Tiago Correia: “Levo sempre um bocadinho do Montijo em todos os fados que canto”

À conversa com o Montijo On City no mês em que assinala os 11 anos de carreira, o fadista destaca o orgulho que tem na sua “terrinha”, o Afonsoeiro, recorda os momentos mais marcantes, fala sobre o seu disco e o processo de escrita dos fados que compõe, que revelam a sua verdade e aquilo que é.

Dia 20 deste mês assinalas os 11 anos de carreira. Olhando para trás, que balanço fazes destes anos?

É um balanço muito positivo. Tenho 23 anos, mas às vezes sinto que nasci naquele dia porque parece que é a partir daquele momento que me lembro de tudo. Comecei a cantar por graça nos restaurantes e aqui no Montijo em julho de 2009, mas foi nesse dia 20 de setembro que me estreei na TVI no programa “Uma Canção para Ti” e decidi marcar essa data que é mesmo muito especial porque marca o começo de tudo aquilo que tem sido a minha vida até agora.

Quais os momentos mais marcantes?

Tive vários, tive coisas muito bonitas. Comecei a ir para as casas de fados com 17/18 anos, fiz também um ano de musical do [Filipe] La Féria, no Casino Estoril, isto ainda era muito miúdo e foi muito especial.

Mas um momento que foi muito marcante foi o regresso aqui às origens. Estive quase sete ou oito anos sem cantar na minha terrinha, que é o Afonsoeiro e que eu muito me orgulho, onde fiz um espetáculo, no início de 2019, comemorativo desses 10 anos de carreira, na sede do rancho e a sala esteve completamente lotada, com duzentas e tal pessoas, foi uma noite incrível porque cantei para os meus.

Há uma outra noite muito especial, que é uma noite em que canto aqui no Montijo. Era muito menino, tinha aí 12 anos, e recebi o aplauso dos meus, ainda eram os meus avós vivos, que são muito importantes no meu percurso, ainda tinha muita gente que hoje já não tenho. Essas são duas datas marcantes.

Depois de 11 anos ainda ficas nervoso quando vais cantar?

Tem dias. Os meus nervos dependem muito da forma como a minha voz está quando acordo. Se tiver uma atuação muito importante e sentir que a minha voz está positivamente boa e como eu quero que esteja, então os meus nervos acalmam um bocadinho. Agora tive a oportunidade de ir á televisão por duas vezes, uma delas aqui no Montijo, e no dia que acordei para ir ao Montijo estava com a voz péssima e foram uns nervos totais.

 A voz é algo que me importa muito, tem de estar boa para dar a intenção à palavra. Eu não canto com o objetivo de mostrar se tenho muita voz ou pouca voz, canto no sentido de passar uma mensagem através das palavras. Se a voz não está de acordo com a intenção das palavras que eu quero dar, acaba por me desagradar um bocadinho e nisso eu sou muito crítico comigo próprio.

Tens estado a trabalhar no teu disco. Como está a correr?

O disco começou a ser pensado em 2018, mas desde daí fui construído um reportório muito meu. Agora se tiver de pensar naquilo que pensei a primeira vez para um disco a ideia é totalmente diferente. O disco está a ser trabalhado e está a ser desenvolvido, podia ter saído neste ano de 2020 se não fosse toda esta situação, mas talvez para 2021 ou no máximo 2022 esse disco está cá fora, espero eu.

“A escrita dos fados é muito verdadeira e as pessoas deviam prestar muita atenção aos poemas escritos em fado porque os fados retratam as nossas vidas”.

Como é o processo de escrever música, escrever fado?

O processo de escrita é um processo interessante porque nos fados a forma de escrever é escrever a nossa verdade. Acho que a escrita dos fados é muito verdadeira e as pessoas deviam prestar muita atenção aos poemas escritos em fado porque os fados retratam as nossas vidas. É um retrato ao amor, um retrato à saudade, um retrato às nossas vivências, um retrato daquilo que nos marca e das nossas peripécias na cidade. É muito por aí aquilo que eu gosto de escrever, é a minha verdade e aquilo que eu sinto que sou.

As músicas “Um só Minuto” e “Um Fado que ainda Canto”, que cantaste recentemente na RTP, são da tua autoria?

Sim. “Um Fado que ainda Canto” foi um poema que escrevi durante a quarentena, estava em casa e inspirei-me bastante neste tempo que estamos a viver. É um pouco da minha verdade e uma homenagem às pessoas que têm feito parte do meu caminho e dos fados, pretendi escrever sobre eles. Essa letra foi feita numa música que já existe há muitos anos que é a música popular do fado Mouraria.

“Um só Minuto” é um tema que escrevi para uma rapariga que acabou por ser minha namorada e na altura escrevi isso para ela e nunca cantei, nunca tive coragem de cantar. Quando fui à RTP pediram para cantar um tema alegre e lembrei-me de cantar esse tema. Era uma música que em 2018 fazia parte das ideias do disco e que agora até já não fazia, mas depois disto se calhar faz outra vez, quem sabe.

Eu tento ter uma escrita difícil de entender, gosto de escrever a minha vida, mas não gosto de a descodificar toda, gosto que as pessoas possam entender à sua maneira.

Durante a quarentena iniciaste o projeto “Conversas da Porta 3”, através de diretos na rede social Instagram. Como surgiu essa ideia e no que consistia esse projeto?

Foi uma ideia que me surgiu na faculdade, há quatro anos quando estava a tirar o curso, só que a ideia era um bocado diferente, era fazer um projeto chamado Concertos da Porta 3. Todas as semanas levava uma equipa de multimédia, que havia em Setúbal, e levava uma série de artistas para atuarem na minha casa, só que isso nunca se concretizou.

Como estava em casa já muito farto de não fazer nada, estive 52 dias em casa de quarentena, há um dia em que tenho a ideia de juntar os meus amigos e pessoas que admiro, através do Instagram, com o objetivo de ter conversas interessantes em que eu vá ao íntimo profissional de cada um deles para saber um bocadinho mais. Eles estão sempre a saber as minhas coisas dos fados e da música e eu nem sempre sei tudo sobre eles e gostava de saber. O objetivo também foi trabalhar e desenvolver um bocadinho a parte da comunicação social que estava estagnada, gosto muito dessa parte e estava muito focado em fazer uma coisa interessante. Confesso que foi muito duro porque tinha 5 convidados por dia, todos os dias durante cinco dias da semana.

Esse projeto foi muito interessante e acabou de uma forma que eu nunca esperei. Tive como convidados o senhor Ruy de Carvalho, a dona Eunice [Muñoz] e a dona Simone [de Oliveira]. Esse foi o programa mais difícil de organizar, foram algumas semanas a pensar como iria fazer o convite e a reunir coragem para o fazer. Foi fascinante, acabei o programa e comecei a chorar porque estava mesmo contente, foram 56 convidados em duas semanas e deu tanto trabalho.

Já voltaste às casas de fados? Já voltaste a Lisboa?

Já, mas de forma muito pontual. Eu atuava quatro dias por semana no restaurante O Forcado, em Lisboa. A casa já abriu, mas o processo de reabertura está muito lento, estou a ter algumas atuações por fora, mas está complicado.

Qual é a sensação de cantar numa casa de fados?

Para mim é a melhor sensação do mundo. Eu gosto muito de cantar no Forcado porque estando cheio mete 250 pessoas e é uma casa enorme, mas mesmo com aquela gente toda não perde a acústica. Enquanto fadista o maior sonho do mundo é cantar sempre numa casa de fados, há o sonho de palcos e do disco, mas cantar numa casa de fados é regressar ao centro e é quase como estar na minha casa e isso é muito importante. Lá aprendi muito no convívio com os músicos, com os fadistas e com os compositores e já me está a fazer muita falta.

A Câmara Municipal do Montijo convidou-te para comemorar o 25 de abril, cantando Grândola Vila Morena. Dizes ter sido um dos momentos mais especiais da tua vida, porquê?

Porque os meus avós cantavam muito essa música lá em casa, eles eram oriundos do Alentejo e viveram muito intensamente essa fase do 25 de abril, eles emocionavam-se quando ouviam essas cantigas.

Foi tocante receber um convite por parte da Câmara e aceitei logo. Não sabia como ia cantar aquele tema, saiu daquela forma porque eu estava a cantar e a sentir o peso deles, daqueles anos todos em que os ouvi a cantar. Foi um momento muito especial porque se eles estivessem cá iam ficar muito emocionados, como eu me tinha emocionado com eles a ouvir, foi especial e marcante por isso, é inesquecível mesmo.

O Montijo é uma cidade ligada ao fado e com essa tradição?

Desde sempre. O que acho é que há menos jovens a cantar o fado do que antigamente havia fadistas. Tens fadistas incríveis, a Manuela Cavaco, uma pessoa incrível e dona de uma voz única, e tens outros que já partiram como por exemplo o Américo Correia e o Carlos Pontes, que são nomes muito importantes desta cidade.

Isto é uma terra de fados e tradições ligadas ao fado porque o fado na sua história vem muito do mar e das saudades da vida de marinheiro, da terra e do povo e nós aqui no Montijo somos muito ligados a isso tudo, o Montijo é muito especial, eu levo sempre um bocadinho do Montijo em todos os fados que canto.

“O fado é o canto da alma imperfeita porque nenhum de nós é perfeito em nada, toda a gente tem defeitos, e no fado cantamos esses defeitos”

O que é o fado para ti?

Os fadistas todos costumam dizer que o fado não tem definição, apenas se sente, e é verdade. Nós não conseguimos quase dar uma explicação ao fado porque ele vive muito das nossas sensações.

Uma vez procurei definir o fado numa frase e disse que “o fado é o canto da alma imperfeita” porque nenhum de nós é perfeito em nada, toda a gente tem defeitos, e no fado cantamos esses defeitos, esses sentimentos e essas coisas boas e menos boas e vamos buscar um bocadinho de nós através de cada cantiga. Para mim o fado é cantar a nossa verdade e a nossa verdade nunca é perfeita porque isso não existe.

Onde te podemos ouvir atualmente? Tens espetáculos agendados?

Sim, vamos ver se não são cancelados. Dia 11 de setembro vou estar em Setúbal, na Casa da Cultura. Dia 12 de setembro vou estar no jardim da Casa da Amália Rodrigues e dia 20 tenho outra homenagem à Amália no Fórum Municipal Luísa Todi, em Setúbal. No dia 3 de outubro tenho o meu concerto, juntamente com a Maura [Airez], Buba [Espinho] e Joana Almeida, no Festival Santa Casa Alfama, em Lisboa.

Quais são as tuas perspetivas para os próximos anos?

Procurarei sempre através dos meus temas construir o meu caminho e espero que daqui a muitos anos, mesmo que eu já cá não esteja, as pessoas ainda possam recordar alguns desses temas, esse é o meu grande sonho e grande desafio para o futuro, é sempre ir fazendo mais, mas que esse mais fique. Não quero ser esquecido, tenho muito medo dos temas que são esquecidos ou das pessoas que são esquecidas, isso é das coisas que mais me assusta.

Objetivos tenho muitos, quero fazer o disco e conhecer mais o mundo através da minha música. Também tenho alguns na área da comunicação social, mas esses são segredo e não posso desvendar ainda.

Na música quero ser sempre coerente com o meu trabalho e com aquilo que faço e tentar nunca perder muito o norte para agradar os outros. Quero escrever sempre a minha verdade e nunca abdicar dela.  

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