Américo Moreira: “O risco sempre foi a minha vida”

Desde as brincadeiras de criança até ao sucesso alcançado enquanto forcado, Américo José da Silva Moreira mostra uma faceta que não é tão conhecida.

É pouco provável que viva no Montijo e nunca tenha ouvido falar no bombeiro Américo José da Silva Moreira. A sua humildade e devoção à Associação Humanitária dos Bombeiros do Montijo são conhecidas por todos. Foram 45 anos de vida dedicados a esta causa, cinco dos quais assumidos enquanto Comandante da Corporação. Mas o que poucos conhecem é que, em criança, o ex-bombeiro não suportava ver sangue e chegou mesmo a construir uma carreira enquanto forcado. Em conversa com o Montijo On City, Américo Moreira abre o seu coração e conta como foi viver uma vida marcada pelo risco.

O Américo é natural de Porto Brandão (Caparica) e viveu lá até aos seis anos de idade. Que memórias tem da sua infância nesta localidade?

O meu pai trabalhava em Lisboa na Casa Pia, era mestre de entalhador e então foi morar para Porto Brandão porque era o sítio mais próximo que tinha arranjado para ficar perto do trabalho. A minha mãe estava grávida e acabou por vir para Porto Brandão. Mas a minha família era toda de Aveiro. Os meus pais, os meus avós, os meus irmãos e os meus primos são todos de Aveiro. O único que veio cá nascer no Montijo, bem no Montijo não. Eu digo sempre que nasci no Montijo porque me considero um montijense.

Fiquei em Porto Brandão até ter um ou dois anos e depois voltei para Aveiro. Não tenho memórias de Aveiro porque tive lá pouco tempo. Tenho vaga ideia de andar lá com um tio meu nos moliceiros

Aos seis anos veio viver para o Montijo. Como foi crescer nesta cidade?

Aos seis anos vim para o Montijo porque o meu pai deixou de trabalhar na Casa Pia e começou a trabalhar numa firma de móveis no Montijo que se chamava “Benavente”. Cresci como outra criança nessa altura. Ia ao banho à praia, ao Cais do Milho, à costa dos barcos. Jogava muito à bola também.

Américo Moreira (segundo a contar da esquerda) em criança junto da família_DR

Portava-se bem em pequeno?

Eu era um misto. Antigamente nós sabíamos viver. Não tínhamos telemóveis e com uma pedra fazíamos uma grande brincadeira. Era um convívio muito maior. Agora não. As crianças enfiam-se em casa de volta do computador e se perguntarmos, por exemplo, se querem jogar ao berlinde, respondem-nos «Em que parte do computador é que isso fica?». A realidade é esta.

Eu fiz até à sexta classe e aí o meu pai perguntou-me «Queres ir trabalhar ou continuar a estudar?». Eu não gostava nada de estudar, então disse que preferia ir trabalhar. Fiz a sexta classe porque era obrigatório na altura. Depois ainda me inscrevi de noite para fazer o nono ano, mas cheguei a meio do ano e desisti. Eu comecei a trabalhar muito cedo, aos 14 anos. Então vinha do trabalho e já não tinha cabeça para os estudos.

Qual foi o seu primeiro emprego?

Eu andei à procura de trabalho na cortiça e consegui arranjar trabalho na Fábrica de Explosivos da Trafaria, a Fábrica da Pólvora. Este foi o meu primeiro trabalho a sério porque, quando era novo, havia uma drogaria ao pé da escola e, assim que as aulas acabavam, eu ia lá ajudar. O senhor já faleceu e tinha um fabrico de fazer tapetes em cortiça e eu ia lá ajudar e ganhar uns trocozinhos para ir ao cinema. E assim era. Mas trabalhar a sério foi como operário na Fábrica da Pólvora. Entrei e saí três vezes de lá porque não prestava para nada (risos).

Quando somos pequenos existe sempre a idealização de uma profissão para o futuro. O que é que o Américo sonhava ser quando era criança?

Não tinha nada em mente. A minha irmã mais velha tinha a mania de dizer que queria que eu fosse doutor. E eu dizia «Doutor só da mula russa» (risos). Nunca tive nenhuma profissão de sonho. Era assim a vida. Fazíamos o que aparecia.

“(…) fui sozinho à cara do touro e levei um grande tareão. Um tareão mesmo daqueles a sério.”

Também foi forcado em vários grupos, nomeadamente a Tertúlia Tauromáquica Montijense e os Amadores do Montijo. De onde vem este seu fascínio pela tauromaquia?

Eu morava no final da Rua Joaquim de Almeida, perto da Praça de Touros. Hoje vemos aquilo tudo arranjadinho, mas na minha época era tudo terreno baldio. Eu morava ali numa quinta, num prédio mesmo em frente à praça de touros. Os forcados e os toureiros iam para ali treinar. Então a primeira coisa que quis ser foi toureiro. Comecei e tal, mas aquilo era muito cansativo. Tinha de se correr muito e ter muita preparação física, então eu optei pelos forcados.

Tinha 14 anos e fui um dia a uma reunião na Tertúlia do Montijo e disse para o Cabo «Olhem, eu não sei se sou capaz de fazer isto ou não porque nunca me pus à frente de nenhum animal, mas quero tentar». Comecei a treinar. Houve uma corrida aqui no Montijo, uma largada de um touro para os curiosos. O cabo estava lá em cima e começou a pressionar-me e a dizer que o touro estava bom para eu ir tentar pegar e passou o dedo indicador ao longo do pescoço. Eu pensei que ele me estivesse a dizer que eu só tinha garganta e não era capaz de ir à cara do touro. Resumindo e concluindo, fui sozinho à cara do touro e levei um grande tareão. Um tareão mesmo daqueles a sério. Felizmente não parti nada, mas tinha estreado umas calças e uma camisa que nunca mais vi (risos).

Então, comecei assim. Aquela foi a primeira vez. Passado 15 dias há outra corrida. Fiquei muito espantado quando, mais uma vez, o Cabo me mandou ir à cara do touro. E à primeira tentativa consegui. Depois, foi uma continuação durante 19 anos. Saí de lá aos 33 anos.

Na época de 1974, eu e o saudoso José Luís Figueiredo andávamos ao despique para ver quem conseguia pegar mais touros. Pegámos cerca de 22 touros cada um numa época só. Ganhei um prémio da melhor pega no Montijo.

Uma pega à cabeça do touro feira pelo bombeiro_DR

O que sentia quando pegava touros?

É um misto de emoções. É como se um homem grande e um homem pequenino se confrontassem e o homem pequenino dá um tareão ao homem grande. É uma sensação de poder e inteligência. Nós, enquanto seres humanos, temos mais inteligência que o animal. E com essa inteligência conseguimos sobrepor a força bruta do animal.

Também foi toureiro cómico e, inclusive foi considerado um dos melhores toureiros cómicos do país. Isto na década de 80, certo?

Exatamente. Ainda há pouco o Él Gran Tótó [grupo no qual foi toureiro cómico] me identificou numa publicação no Facebook a dizer «Eh comandante, temos de nos juntar outra vez. Levamos a bola de oxigénio e temos de tourear». Porque infelizmente acabou o toureiro cómico.

Qual era exatamente a sua função?

O toureiro cómico brinca. Brinca com uma vaca e faz rir o público. Veste-se de palhaço e diverte-se também a ele próprio. Quando saí dos Medrosos do Montijo, o Jaime Armando que era o Él Gran Totó, telefonou-me porque queria muito falar comigo. Perguntou-me quanto é que eu queria para ir tourear com ele. Defini a verba e assim fomos. O primeiro espetáculo que demos foi na Vila Nova da Barquinha.

“O mal que se fez foi terem acabado com o toureiro cómico em Portugal.”

O Américo já tinha aptidão para a comédia?

Não. Aquilo apareceu simplesmente. Eu já tinha visto toureiros espanhóis e tinha visto aquele que para mim foi o melhor toureiro cómico a nível nacional, o Joaquim Caramelo. Já o tinha visto tourear uma vaca com uma bicicleta a pedal.

Como eu estava a dizer, o primeiro espetáculo foi em Vila Nova da Barquinha. Só eu e o Jaime. E eu pensava «Então, mas onde está o resto da malta?». Chegou o momento de ir vestir a roupa e ainda não tinha aparecido mais ninguém. Tive de perguntar ao Jaime «Então, somos só nós?». E a reposta foi «Sim, só os dois». Perguntei logo o que tinha de fazer. O Jaime disse para fazer o que quisesse que ele estava atrás de mim para o que fosse preciso. Isto minutos antes do espetáculo.

Como se sentia ao fazer as pessoas rir?

Era uma sensação boa. Era diferente de tourear a sério. O mal que se fez foi terem acabado com o toureiro cómico em Portugal. Vejamos, como se criam os aficionados? Tem de existir um ponto de partida e os espetáculos cómicos criaram muitos aficionados. Uma menina que vá desde pequenina assistir aos espetáculos cómicos com o pai começa a gostar. A partir daí já não é só o espetáculo cómico. Quer ver a sério. E assim se criam os aficionados. Atualmente, estamos a perder muito com isso.

Toureei em todas as praças do país. Fiz dois espetáculos em Espanha, num dos quais cortei uma orelha ao touro. Em Espanha, o prémio do matador é uma peça do animal. O menos valioso é uma orelha, a seguir o rabo e se for mesmo bom leva a pata. Nessa, o público atribuiu-me a orelha.

Ainda a guarda?

Ofereci-a ao meu herdeiro, o meu neto. Ele tem aquilo guardado com muito carinho.

Corpo dos Bombeiros do Montijo no combate ao fogo_DR

Aos 15 anos entrou como cadete no corpo dos Bombeiros Voluntários do Montijo. Como surgiu esta oportunidade?

Em simultâneo com as touradas entrei para os bombeiros. Antigamente, havia um programa na televisão que se chamava A minha vida é um perigo e a malta brincava porque eu trabalhava na Fábrica da Pólvora, era forcado e bombeiro. Três profissões perigosas. Mas o risco sempre foi a minha vida.

O Américo sempre gostou de viver ao limite, não é?

Sim. E gosto bastante de me desafiar.

Entrou para os bombeiros através do seu cunhado, não foi? Porquê esta decisão?

Eu via o meu cunhado e amigos que lá andavam e era mais um desafio que se punha. Fiquei inscrito no dia 1 de janeiro 1973. Fui voluntário durante muitos anos e só me profissionalizei em 1989. Depois comecei logo a gostar. Eu costumo dizer que ser bombeiro não se aprende, nasce connosco. E penso que nasci com essa aptidão.

O que é preciso ter para ser bombeiro?

Em primeiro lugar, muita força de vontade. Em segundo lugar, amor pelo próximo.

“Quando entrei para os bombeiros pensei logo «Assim que vir sangue isto vai dar caldeirada» “

Esta profissão existe um grande nível de coragem e altruísmo. Teve algum momento difícil em que pensasse desistir?

Já enfrentei momentos muito difíceis em que é preciso ter calma e serenidade. Vi coisas e passei por coisas que, naquela altura, me marcaram. Mas nunca pensei em desistir.

Só para perceber melhor, eu morava numa quinta junto à praça de touros e havia lá um galinheiro muito grande. À sexta-feira era a morte das galinhas e um dia fui para lá ver. Enfiavam a cabeça da galinha num funil e davam um golpe na cabeça da galinha para sangrar. Eu devia ter uns oito anos, mas era muito curioso e estava sempre a querer perceber o que se estava a passar. Então o homenzito chamou-me para eu ir ajudar. Eu agarrei a galinha pelo pescoço, mas não aguentei. Desmaiei só de ver a galinha a deitar sangue. Aquilo fez-me muita confusão.

Quando entrei para os bombeiros pensei logo «Assim que vir sangue isto vai dar caldeirada». Felizmente não deu. E posso dizer que vi as coisas mais horrorosas que possam existir. No momento não me fazia confusão porque eu já sabia para o que ia. Tinha sangue-frio. Mas quando vinha para casa é que ficava a matutar.

Atribuição da medalha de ouro na comemoração do 108º aniversário dos Bombeiros do Montijo_DR

Em 2017 recebeu um crachá de ouro. O que sente quando o seu trabalho é valorizado pela comunidade?

É um momento gratificante em que percebemos que há reconhecimento pelo trabalho que se desempenhou.

Este ano foi pedido por parte da direção dos bombeiros que cessasse funções. O que sentiu quando esta decisão foi tomada?

Sinto-me apenas um bocado triste porque acho que merecia mais. Aos 65 anos temos de cessar funções dos bombeiros e eu concordo com isso. Mas há indivíduos com 65 anos que deixam de ser ativos e outros que continuam sempre ativos e na linha da frente. E eu ainda me sinto ativo. É um pouco revoltante.

Continua a sentir-se bombeiro?

Continuo. Ainda ontem vi um acidente e liguei logo para o quartel. Ainda sinto esse dever e estou preparado para aquilo que precisarem de mim.

Este ano, Américo cessou funções enquanto bombeiro_DR

Que estórias guarda para contar aos netos?

Só posso contar as boas porque não vale a pena contar as más (risos). Felizmente, eles sabem quem foi o avó e o que fez. Costumo contar muitas estórias do meu tempo nos forcados ao meu neto mais velho porque ele é aficionado pela tauromaquia e tem interesse em saber.

“Para os netos não insisto que sejam bombeiros. São o que quiserem.”

Gostava que os netos seguissem o mesmo percurso que o Américo? Quer nos bombeiros ou nos forcados?

O meu filho foi cadete nos bombeiros. Um dia chegou a casa para jantar e disse-me «Pai, vou pedir a demissão dos bombeiros. Toda a gente faz porcaria, mas quem paga sou sempre eu». Eu aceitei a decisão dele porque tinha a noção de que, como ele era meu filho, eu acabava por castigá-lo mais para não pensarem que eu deixava as coisas passar por sermos família. Para os netos não insisto que sejam bombeiros. São o que quiserem.

O que é que o futuro lhe reserva?

Quero passar um dia de cada vez. O meu filho tem uma oficina de alumínios e eu vou para lá ajudar no que for preciso. Sinto-me feliz assim.

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