Henrique Feist: “O Montijo não arredou pé para ver os filhos da terra”

Henrique Feist é uma cara conhecida do mundo do Teatro, tendo sempre se destacado enquanto ator, músico e encenador de diversas peças que já pisaram palco português. Ganhou um globo de ouro em 2013 enquanto melhor ator de teatro musical, numa peça encenada por si e conta também com um vasto registo de dobragens realizadas para televisão portuguesa.
Filho das gentes do Montijo, carrega a cidade no coração e partilhou connosco alguns dos seus momentos preferidos.
Qual a sua ligação com o Montijo?
Eu nunca morei no Montijo, mas a minha família materna é toda de lá. Tenho grandes laços com a cidade, apesar de nunca ter vivido perto. Eu acabava por ir muitas vezes à cidade porque os meus avós voltaram a viver lá e tenho muita família com fortes ligações históricas, tanto que há uma avenida muito conhecida no Montijo, a avenida Paulino Gomes, e esse Paulino Gomes era o meu bisavô.
A minha bisavó Marta, por exemplo, foi das que lançou a primeira pedra no Hospital do Montijo e isso acaba por criar uma grande ligação à cidade. Até porque, à parte dos avós, havia todos os primos e tios. Eu ia muito à casa dos primos dos meus avós e ia muito às Festas do Montijo, recordo-me. Também cheguei a cantar nas Festas do Montijo nos anos 80, com o meu irmão.
Mas confesso que, das coisas que mais me atrai na cidade é o cozido e, se me vais perguntar qual é o restaurante em que se come o melhor cozido, eu tenho de te dizer que nunca foi em restaurantes, foi sim em casas de familiares. Mas há qualquer coisa na forma como os montijenses fazem o cozido que resulta muito bem. Aliás, a própria gastronomia do Montijo é muito boa e os restaurantes do Montijo são muito bons.
Continua a recordar a cidade com muito carinho?
Sempre. O Montijo tinha uma coisa que eu sempre gostei que era aquela sensação de teres aquele centro com o seu traço todo antigo. Eu conheci o Montijo no final dos anos 70 e o que eu tenho muita pena que se tenha perdido aquela ideia de vila pitoresca portuguesa com o passar dos anos. Tens aquele centro com o traço todo antigo, mas depois percebes por onde se expandiu e perdeu o seu encanto.
A necessidade de se expandirem é normal, porque todas as vilas tiveram de o fazer e existem sempre mais pessoas no mundo a necessitar de casa, só que o Montijo teve sempre aquela visão muito campina que se foi perdendo com a urbanização e modernização.
O que recorda melhor dos seus tempos no Montijo?
Eu tinha uma prima chamada Maria Gabriela, e ela tinha uma casa daquelas típicas do Montijo com pátios interiores, mas abertos, ao ar-livre. Lembro-me que num dia, após as largadas de touros no Montijo, ela fez uma patuscada com cozido e tenho muito boas recordações. Eram aquelas noites de Verão muito quentes e havia sempre boa companhia e boa comida. Isso são aquelas verdadeiras noites muito bem passadas.
E tinha também uma prima que tinha uma casa, na zona da Atalaia, e fazia umas patuscadas na adega, porque eram daquelas adegas com mesas corridas em madeira, onde se sentavam as pessoas. Depois, havia sempre alguém a tocar guitarra e outro a tocar piano também. Eram sempre aquelas noites onde havia fado e convívio e essas noites eu guardo com muita boa memória.
Lembro-me também que houve umas festas nas quais participámos e que estava a chover torrencialmente. Nós estávamos protegidos porque o palco estava protegido, mas o público não estava e, no entanto, ninguém arredou pé. Estavam lá com chapéus de chuva, mas ninguém arredou pé e o sentimento que tive naquele momento, naquele concerto em 84, foi que o Montijo não arredou pé para ver os filhos da terra. Apesar de sermos de Lisboa, senti que éramos carinhosamente os filhos da terra. Isso é uma memória muito bonita.
De onde surgiu este gosto particular pela música e pelo teatro?
O gosto pela música e pela representação, porque foi ao mesmo tempo, surgiu quando vi a primeira peça de teatro musical em Londres. Tinha apenas 6 anos e aquilo fascinou-me. Fascinou-me o facto de, dentro de uma canção, teres de ser ator. Não é apenas cantar bem, é perceber que aquela canção não deixa de contar uma história e fascinou-me o facto de exigir de ti em teatro cantado tanto ou mais do que em teatro falado.
Ainda por cima porque estamos a lidar com uma linguagem que não é natural, não é uma linguagem do teu dia a dia porque não andamos sempre a cantar. Portanto, o facto de não ser uma linguagem que tu dominas, mas teres de convencer enquanto ator, porque só tens a canção para representar, fascinou-me.

A partir desse primeiro contacto com o mundo da música e do teatro, o meu percurso foi sempre ligado ao teatro musical porque, assim que pude fazer o 12º ano na área, fui para Inglaterra fazê-lo porque não há cá 12º em Teatro Musical. Eu tenho pena de não existir essa oportunidade em Portugal, a cultura devia fazer parte da educação. Mas o facto é que fiz o 12º ano em Teatro Musical, em Inglaterra e depois licenciei-me lá também nesta área.
Quando voltei para Portugal e sempre estive envolvido com teatro, o meu percurso sempre foi ligado a essa área. Até mesmo quando começou o duo Nuno & Henrique em 1982, uma das coisas que tínhamos estipulado com as editoras é que, em cada disco feito por nós, o lado A correspondia à tal canção mais comercial, mas o lado B seria sempre mais ligado a teatro musical, para que não perdêssemos essa coerência.
Qual o teatro em que mais gostou de participar?
Eu costumo dizer que é sempre o que vem a seguir. Porque tudo o que te aparece para fazer é um desafio e naquele momento torna o papel de protagonista que sempre terá um destaque na minha vivência. O que me dá mais prazer é o que vem a seguir. Porquê? Porque vai ser outro desafio e vai ser o protagonista do momento. Agora, há uns mais desafiantes do que outros, mas todos têm o mesmo prazer. É difícil escolher algum.
A nível de personagens mais desafiantes que tive até à data para interpretar, um dos que posso destacar foi no musical “Máquina de Somar”, feito no Teatro da Trindade e encenado pela Fernanda Lapa. Nesse musical, eu interpretava um homem de 60/65 anos, portanto, logo aí, foi uma composição de personagem difícil porque eu tinha cerca de quarenta anos.
Fazer uma personagem de 60/65 anos, que percorre a peça toda, sendo que o musical tinha 1h e 40min de duração e eu nunca saía de palco, foi sem dúvida um desafio, no sentido de adotares um personagem que, no fundo, é quase trinta anos mais velho que eu mesmo. Mas, por outro lado, pensei que se consegui fazer um Dragon Ball e consegui dar voz a um Son Gohan que tinha 9/10 anos com trinta anos, agora é feito o desafio completamente lançado ao contrário.
E depois, outro dos mais desafiantes que tive de interpretar foi o “Broadway baby”, o espetáculo que escrevi e que fiz com o Nuno para celebrar os trinta anos de carreira, no qual recebi o globo de ouro de melhor ator. Aqui nem foi a questão do globo de ouro que o fez ser desafiante, foi o facto de ser um musical americano no qual se cantava à volta de 80 e tal temas, mas todos teatralizados. Não era um concerto, eu saltava entre as várias personagens que cantavam aquela canção, no dito musical, naquele dito momento. Eu fazia 88 personagens e isso é um desafio porque estás constantemente em mudança, minuto a minuto.

A razão pela qual alguém canta o “Maria” do West Side Story, não é a mesma razão pela qual alguém canta “Summer nights” do Grease ou até a mesma razão pela qual se canta “One Night Only” das Dreamgirls. O motivo pela qual se canta a canção nunca é o mesmo e eram 88, logo foi um grande desafio.
É difícil conseguirmo-nos desligar de quem somos no momento de interpretar uma personagem?
Não porque acabas sempre por trazer um bocadinho de ti. Um ator beneficia dos acontecimentos do passado e das suas memórias ao trazê-las para as espelhar no momento em que interpreta a personagem. Obviamente que nenhuma situação é igual, mas a emoção é e se tiveres uma memória emotiva que naquele momento te beneficie, com certeza que a vais buscar. Vais sempre buscar alguma coisa a qualquer experiência que tenhas tido, se tiveres a oportunidade de ter tido essa experiência.
Por outro lado, se for um papel ao qual tu vejas que nunca tiveste nenhuma experiência similar, a tua função é ir para a rua e procurar onde te possas basear. Procuras alguém que tenha esse tipo de nuance da personagem para conseguires depois o retratares da melhor forma.
Como é a rotina de um ator de teatro musical?
A rotina é rezar primeiro para que haja trabalho. O mercado de teatro musical em Portugal é quase inexistente. Não há uma rotina. Para mim, uma verdadeira rotina é o que vives em Londres. Lá, ou estás em palco ou estás a trabalhar num part-time, no período em que estás parado e que nada tem a ver com teatro, mas acabas por estar num período de audições para o próximo musical. Isto para mim, é que é uma rotina lógica de teatro musical.
É isto que se passa em Espanha, em França, na Alemanha, que têm todos o seu próprio mercado de teatro musical. Tanto podes estar a trabalhar como, passado 6 meses podes não estar em teatro e, no entanto, passado 6 meses estás novamente em palco. Aqui não tens uma rotina. Tens períodos onde hibernas, tens poucos períodos onde trabalhas e essa é a tristeza da parte cultural teatral em Portugal. Não é que o público se desligue de teatro musical, está mais que provado que temos público para tal. O problema é a pouca oferta do mesmo.
Não é por acaso que em tantos concursos como o Got Talent e The Voice haja cada vez mais pessoal a levar repertório de teatro musical. O problema é que não tens muita oferta de espetáculos porque, para já, é uma fórmula cara, principalmente se pensarmos em músicos ao vivo. Depois, é uma fórmula que onde só tens rentabilidade num teatro com lugares para tal porque uma produção destas envolve muita gente, envolve a manutenção que uma peça falada não precisa, envolve muita logística de bastidores e muitos outros custos que qualquer outro teatro não tem.
Haverá milhentas razões para justificar a pouca oferta porque também não há espaços, não há teatros que acolhem porque cada teatro tem também a sua programação. E depois, o teatro musical é algo que funciona por temporadas, não pode funcionar apenas por um fim-de-semana porque assim não se pagava a ele próprio e o tempo de ensaios que tem. O teatro musical tem muito mais tempo de ensaios do que uma peça falada, portanto existe toda esta logística a considerar.
É melhor ser parte do elenco e poder interpretar um papel ou estar nos bastidores a dirigir e criar uma peça de raiz?
Quem puder fazer as duas coisas é sempre melhor porque tens o melhor dos dois mundos. Como ator estás sempre a aprender, mas como diretor, encenador e criador, também estás sempre a aprender. Obviamente que se tiveres estudo e experiência que te dão para conjugar os dois mundos, ainda melhor é porque estás em aprendizagem constante nos dois mundos.
No criar o espetáculo, o grande desafio é que tu saibas que está ali uma peça que entretenha o público, mas que passe uma mensagem também. Que não seja apenas uma coisa gratuita e vazia de sentido. Queres que passe uma mensagem, que desafie o pensamento do público e que desafie mentalidades, mas que entretenha sempre. O objetivo é fazer um espetáculo não do ponto de vista daquilo que gostarias, se bem que o teu gosto está sempre inerente ao que crias, mas não se pode cair em narcisismo total onde não se leve em mente o que o público pode querer ver ou onde não se equacione esse fator também.
Não entram aqui gostos pessoais, nem desejos individuais. Tens de ter o sangue-frio para adaptar e modificar a peça. É fácil quando relembramos que também já fomos muitas vezes públicos. Aprendemos muito enquanto encenadores, atores, cantores, criadores quando somos público e estamos a pagar para ver outras pessoas a desempenhar um papel e a nos entreter.
E quando recebeu o globo de ouro em 2013, como descreve esse momento?
É sempre um privilégio receber um prémio como o globo de ouro e só o facto de seres nomeado, já é muito bom. Costuma-se dizer que à terceira é de vez e comigo foi assim, foi a terceira vez que estava a ser nomeado para um globo de ouro de melhor ator.

“Foi um privilégio receber um globo de ouro por um espetáculo que ainda por cima celebrava os meus trinta anos de carreira, numa peça escrita por mim.”
Foi um duplo gosto, mas eu nunca dou o prémio como garantia de que terei trabalho futuro e que não tenho de lutar mais pela minha vida. Ninguém o deve fazer. Não é nenhuma garantia e o teu empenho em criar trabalho, procurar e fazer acontecer, tem de ser igual. Nenhum prémio te garante continuidade de trabalho, em nenhuma parte do mundo e muito menos em Portugal.
Claro que é bom, mas nunca me passou pela cabeça que tal prémio significasse que eu podia baixar os braços e que, a partir desse momento, o trabalho viria ter comigo. Pelo contrário, funcionou sempre como um incentivo a trabalhar com mais afinco porque depois tens um prémio e um público que não podes desiludir. Para o ano faço 40 anos de carreira e o que eu também penso é que se cheguei a metade da minha carreira profissional foi porque sempre lutei, nunca arregacei as mangas. Mas a outra metade também se deve ao público porque também seria inglório ir para um palco onde não tinha ninguém para me ver ou para me aplaudir.
Foi difícil construir essa carreira inicialmente?
É sempre, mas não foi apenas inicialmente. Até agora, continua a ser difícil mantê-la. O começares não é muito difícil, o difícil é continuares, ires mantendo a profissão. É por isso que vemos tantas pessoas que vão desaparecendo, outras que nunca mais ouvimos falar. O arranque e, principalmente nos dias de hoje que vieram a se tornar mais fáceis graças às redes sociais, não é assim tão difícil. O difícil é continuar e manter perante uma realidade cada vez mais injusta do que no tempo em que apareci.
Hoje tu és famoso por 1 minuto, isso é muito ingrato porque depois tens tantas redes sociais e tantos sítios para te dares a conhecer que é realmente aquilo que se costuma dizer de teres “o teu minuto de fama”. Eu apareci num tempo em que as coisas não eram tão injustas, mas mesmo assim foi difícil e continua difícil manter.
E no meio de tantas peças, de tantos espetáculos e festivais em que atuou, onde surgiu o seu gosto por dobragens?
Foi a convite da Isabel Wolmar, porque na altura que voltei de Londres em 93, a Isabel Wolmar estava numa empresa de dobragens que trabalhava para a SIC e andavam à procura de mais vozes masculinas. Então, a Isabel Wolmar, que era uma antiga locutora da RTP, sugeriu que deixasse um registo de voz na empresa de dobragens e eu fi-lo e fiquei escolhido. A primeira série que fiz foi os “Moto Ratos de Marte” e achei muita piada porque a ginástica vocal que precisavas para fazer várias personagens depois, enquanto cantor, ajudava-te imenso.
Podias ter de fazer de um monstro com uma voz mais grave ou então uma personagem mais infantil e que precisasse de uma voz mais infantilizada, não deixava de ser interessante o facto de estares a dar voz a uma personagem. Não era uma figura real, era um boneco e o facto de estares a teatralizar esse boneco ajuda-te a ganhares muita versatilidade vocal e muita versatilidade de personagens.
Nunca me imaginei a dar voz a um filme da Disney, por exemplo, mas foi até ao dia em que começou a ser possível. Ainda por cima porque eu sou da época em que os filmes que tinhas da Disney em Portugal eram dobrados em português do Brasil. Nunca sonhei. Por exemplo, a Branca de Neve foi um dos primeiros filmes que vi nos anos 70. Nunca imaginei e estava longe de mim imaginar que eu iria fazer de príncipe da Branca de Neve anos mais tarde quando se dobrou esse filme para português de Portugal. Eu estava longe de imaginar que o filme que tinha visto com seis/sete anos iria ser dobrado por mim quando tivesse 31 anos.
Ou, por exemplo, a Bela e o Monstro, onde dei voz ao Monstro. Nunca imaginei. Ainda ontem estava com os meus sobrinhos e estávamos a ver o que havia de filmes da Disney e da Dreamworks e eu só pensava na sorte que tinha de ver tantos filmes daqueles dobrados por mim. Tenho sorte de ficar com esse registo.
E que planos ambiciona para o futuro?
É muito difícil responder-te em contexto pandémico. Os teatros ainda estão a meia capacidade. É muito difícil neste contexto conseguir pensar futuramente. O que posso dizer é que estamos com um lançamento em cena, que é um espetáculo dos anos 80 e que temos tido público. Mesmo com máscaras, as pessoas vão e têm saudades de ir ver algo que lhes entretenha. Mas também noto que, mal sai uma regra ou uma nova medida, que isso causa logo impacto na bilheteira, as pessoas ficam mais acauteladas.
No que diz respeito ao teatro, só se pode viver o dia de hoje. Temos ideias do que queremos fazer, queremos estrear um espetáculo em outubro e outro em novembro, mas é muito difícil projetar certezas no contexto em que estamos.