Maria dos Anjos: “Sou a que tenho mais terrenos da colónia de Santo Isidro de Pegões”
Maria dos Anjos era do Sabugal e, como tantos outros, veio para a Colónia de Santo Isidro de Pegões com os seus pais, à procura de melhores condições de vida. Ao cair da noite veio do Norte e desde então não saiu de Pegões. Esta é a história de Maria dos Anjos, que desde cedo foi obrigada a trabalhar na colónia e hoje é a pessoa que possui mais terrenos. Desde a vida na Colónia de Santo Isidro de Pegões até aos dias de hoje, acompanhe-nos nesta entrevista na qual conhecemos um lado lutador e de coragem, mas também muitas histórias divertidas de Maria dos Anjos, uma senhora de 81 anos que bem podia ter 18 anos, pela sua vivacidade e memória.
A Maria dos Anjos foi para a Colónia de Santo Isidro de Pegões com os seus pais. Como era a vida antes da Colónia?
Eu tinha 15 anos e vivia no Norte, mais precisamente no Sabugal e aquilo lá vivia-se muito mal, eramos seis irmãos e eu nunca andei à escola porque tinha que ficar a tomar conta de dois, tinha eu 8 anos, para os meus pais trabalharem, por isso não sei ler nem escrever. A família do meu pai foi quase toda para a colónia de França. No início ninguém queria ir para as colónias porque era do Governo e o meu avô dizia “Vocês nunca foram à tropa e agora querem ser mandados pelo Diabo”. Com 12 anos comecei a trabalhar ao campo até agora, nunca mais parei. O meu pai queria ir para a França, já não podia ir para a colónia porque tinha 51 anos e o limite de idade era 40 e poucos anos, mas o padre era muito amigo do engenheiro e conseguiu que viéssemos. Abalámos na camionete, e chegamos de manhã à colónia. Aqui era tudo diferente. No escritório, em Pegões, estavam os engenheiros e disseram ao meu pai para andarmos até às Figueiras que era onde iriamos morar. À chegada, disseram que podíamos escolher uma casa que ainda haviam muitas.
Como era a casa?
Era uma casa grande, dava para meter a carroça, tinha uma chaminé grande para guardar as carnes dos porcos, um lava louça de cimento, era tudo assim. O meu pai escolheu o terreno onde a tremocilha(flôr amarela)estava maior, que era sinal que a terra era melhor para semear. A casa tinha telhas, as divisões eram de madeira, fazia-se lume a um canto, era assim que funcionava. Chegámos ali e fiquei admirada com aquilo tudo porque onde morava era tudo mais simples. Toda a vida quis uma casa com vidros e então dizia “Só me caso com alguém se o rapaz tiver uma casa com janelas de vidro”. A casa era caiada, lá onde vivia era só pedras. Fiquei toda contente.
Então foi um bom período?
O pior veio depois, o homem disse ao meu pai “A rapariguinha precisa de trabalho, não é?” e o meu pai disse que sim, e então ele disse “Então amanhã já pode começar a trabalhar”. Com 15 anos, não conhecia ninguém, mas tive que ir porque tinha que ajudar os meus irmãos. Fui com a enxada às costas e descalça, não queria ir, dava dois passos à frente e três ou quatro para trás, mas lá me mentalizei que tinha que ir, se não chegava a casa e batiam-me, ora tinha que ir à mesma, mais valia ir logo. Cheguei ao trabalho, não conhecia ninguém e era muito envergonhada, lá fui e trabalhei lá até conhecer o meu marido, com 16 anos, e casar. Comíamos mal. Abalava da minha casa todos os dias, ao nascer do sol, e íamos a pé para a Barragem de Pegões. Agora as pessoas têm um horário, nós na altura íamos ao nascer do sol e saímos quando o sol se estava a esconder. Chegava a casa, pegava em dois baldes, tirava a água com uma corda e até às onze da noite andava a regar as flores, gosto muito de flores.
Como foi trabalhar ao campo?
A minha filha queria trabalhar no campo, mas eu não quis, por trabalhar é que não queria que trabalhassem, levantar-se da cama pela geada a apanhar batata, a chover em cima e dias de calor nós rente à terra e o calor a sair, é muito difícil. Parei porque um dia caí, desfiz o joelho e tive que ser operada. Estava um dia de chuva, mas tinha que ir porque eu sou assim.
Quais eram as vantagens que o Estado oferecia para morar numa colónia?
Eles davam a casa, alfaias, uma charrua, um cultivador e outras coisas assim, os primeiros colonos receberam mais coisas. A vantagem era termos uma casa, mas pagávamos com batatas, trigo, centeio, coisas assim. Tínhamos que dar o que eles entendiam. Não tínhamos dinheiro, tínhamos que comprar fiado porque nós não trouxemos nada quando viemos para aqui. Queríamos semear, mas não havia dinheiro para passar o trator, só quando vendíamos é que conseguíamos pagar o que ficávamos a dever. Eramos controlados nas colónias, todas as semanas uma senhora ia à casa das pessoas e até a cama viam se estava limpa ou não, a mim nunca controlaram mas a outras pessoas sim.
Então era também uma espécie de regimento, não?
Sim, não se podia dividir com os filhos as terras nem vender, não tínhamos escritura. Tínhamos 12 hectares de terra para semear, 4 hectares de vinha, uma casa, uma horta e um pinhal, depois começámos a pagar seis contos por ano.
Se fosse um mau ano para agricultura, como um verão de seca, tinham que pagar à mesma uma quota ao Estado mesmo se ficasse sem nada?
Tínhamos, pagava-se à mesma em batata e trigo consoante o que produzíssemos, vivíamos assim. Havia o Casal Modelo para aprender a fazer comer, costurar, essas coisas, mas nunca pude ir porque tinha que trabalhar de sol a sol. Ao fim de semana que não trabalhava para o Estado trabalhava para o meu pai, mas aprendi a fazer tudo.
E como é que a Maria dos Anjos conheceu o seu marido?
Ao fim de um mês ou dois de estarmos aqui o meu pai queria criar coelhos e tinha que comprar coelheiras, e então ele um dia foi com outro buscar as coelheiras, o homem que as vendia começou a pôr vinho e comer na mesa, e apanharam uma bebedeira muito grande. A voltar, o meu pai vinha bêbado em cima da coelheira, a cantar “Olha a mala, olha a mala de mão”. Passaram onde o meu marido morava, que andava com uma vaca lá na fazenda a gradar a terra, e ele disse “Ah galego d’um cabrão, vais ver a mala de mão como cais agora”, ora ainda não tinha acabado de dizer isto já a carroça tinha tombado, ele foi a correr para ajudar. O macho estava todo enrolado em cordas e tiveram que usar uma navalha para cortar as cordas ao animal, assim que se apanhou livre dá um coice e conforme o faz ele rasga as calças e ficou nu. O meu pai disse para ele ir às Figueiras para lhe pagar as calças mas o meu marido não quis.
E foi aí que o conheceu?
Aqui fazíamos muitos bailes, com foguetes e tudo e num desses bailes ia tocar o António Rouxinol, era um grande baile e o meu marido também foi e disse “Ó, é hoje que o galego paga as calças, se não pagar em dinheiro paga com a filha”, eu estava no baile, não tinha roupas finas mas era bem ajeitadinha. Havia um rapaz que me queria, mas queria duas ao mesmo tempo, se a outra não tivesse dançava comigo, se tivéssemos as duas ele dançava com ela. Então o meu marido veio chamar-me para dançar e dançámos a noite toda, depois pediu-me em namoro e eu disse que só namorava com ordem do meu pai e foi assim que começou.
E como foi o casamento?
O nosso casamento foi engraçado, casámos em Canha pelo registo, fomos de carroça, eram 5 carroças que foram até lá. A mãe do carteiro ficou a fazer o almoço. A meio da manhã começou a chover, e como é que vínhamos para casa? Ora a carroça não tinha toldo, os convidados foram para uma taberna, começaram a beber, beber e embebedaram-se todos, só chegámos a Pegões à noite, já a senhora tinha o comer todo feito. Já não houve o jantar, fomos para casa e no dia a seguir já nos batiam à janela “Florindo, toca a levantar que preciso de batatas”, fomos apanhar batatas à horta.
Foi a lua de mel?
Foi a lua de mel, a minha vida dava um filme, passei muito.
E quando casou, viveu na colónia à mesma?
Quando casei, vivi numa casinha pequena durante quatro anos. Vivia o meu sogro, com uma rapariga, o meu cunhado, a minha cunhada e dois miúdos. Trabalhávamos para o meu sogro mas não recebíamos ordenado nenhum, ele ia buscar as coisas e perguntava o que queríamos. Não tínhamos nada, trabalhávamos e não víamos a vida andar para a frente. Então o meu marido queria ir para África, mas eu não queria e sugeri que viéssemos outra vez para as colónias.
Foi então que regressou?
O meu marido e o meu pai foram a Lisboa para pedirmos um casal aqui na colónia, para criar ovelhas e vacas e conseguimos. Vim de noite para aqui, abalámos de noite para ninguém ver o que trazíamos. Tudo o que tínhamos trouxemos numa carroça com uma vaca para ninguém ver. Mas a carroça era com rodas de ferro e aquilo fazia uma barulheira que as pessoas vieram para as portas ver quem ia embora, quando chegámos à porta da rua já estavam as vizinhas todas na rua, não valeu nada vir de noite.
E como foi?
Começámos a semear, um dia fomos buscar lenha com a dita vaca, que nunca parava quieta, parece até que é alguma coisa a mim, que também nunca estou quieta. O meu vizinho foi com o meu marido, o vizinho estava agarrado aos cornos da vaca para a segurar de forma a não fugir, o meu marido estava na carroça. A vaca estava farta de estar quieta, dá-lhe a maluqueira e fugiu. O vizinho ficou pendurado nos cornos da vaca, ela chegou à vala partiu a carroça, e ó patinhas lá foi ela.
E foi assim que compraram o primeiro carro?
O primeiro carro que comprámos custou 60 contos. Tive duas filhas, uma está no Algarve e outra na Suíça. A minha Graça era de colo quando o meu marido foi buscar o carro com outro senhor e chamou-me para ir de autocarro para vir de carro, aquilo era um brinquedo. Um dia a pequenita foi sair com o pai e no fim da rua ela pediu para trazer a carrinha, mas em vez de ser ele a fazer a curva, deixou a gaiata fazer, eu tinha 227 coelhas a criar e andava a tratar delas no barracão. Ouço um estrondo e pensei “ai meu deus o que aconteceu?” fui ver, estava a carrinha espetada na quina da casa que foi quando parou, a gaiata abala a fugir a chorar, a dizer que partiu o carro e o meu marido a rir perdido e disse “então que queres que faça? O carro já está partido”. Naquela altura vendi o carro por 100 contos mesmo todo partido, fazíamos bons negócios com os carros, não é como agora. Depois comprámos uma carrinha de caixa aberta para levarmos tudo para o mercado.
Na altura as pessoas iam muito ao mercado não era?
Sim, era muito diferente, não se perdia nada, até as laranjas que caiam se vendia para sumos, vendia-se mais barato, mas as pessoas compravam. Orientei a vida assim. Depois ficámos com as terras de outro casal também, pagávamos 8 contos por mais 13 hectares de sequeiro, mais 4 hectares de vinha e 1 hectare de pinhal, sou a que tenho mais terrenos da colónia. Tínhamos uma bela vida, tínhamos porcos, vacas e tudo, se ele não tivesse morrido tão cedo.
Do que é que o seu marido morreu?
Morreu de cancro, sofri muito. No primeiro ano não me levantava da cama, não queria ver ninguém, tive que me andar a tratar com o médico dos nervos e tudo. Quando ele foi internado a minha filha regressou, tinha muitas porcas e tudo a criar e precisava de uma pessoa que me ajudasse. Ao fim de dois anos conheceu o marido, fui operada a um mioma e pronto foi uma vida muito complicada, eu era uma pessoa forte e fiquei carne e osso. Corria pelo hospital, as minhas filhas iam de elevador e eu ia a correr pelas escadas. Teve lá 6 meses, quase que rompi um par de sapatos. Ele era muito divertido e brincalhão. Enganava os vizinhos todos, num primeiro de abril disse para um vizinho “Ó vizinho, então na Adega rebentaram os barris do vinho, o vinho já vem por ali abaixo”, os vizinhos diziam “Á valha-me deus, agora não pagam a uva à gente”, era tudo assim, era muito brincalhão e eu fiquei doente quando ele faleceu. Tenho sofrido muito, agora que podia viver melhor apareceu isto (pandemia de COVID-19)nem posso ir a lado nenhum.