Paulo Futre: “A última coisa que fazia antes de ir embora era ir à praia do Samouco porque a vista era incrível”
A segunda parte da conversa com o ex-jogador é marcada por desabafos sinceros de alguém que teve de aprender a lidar com a fama.

Na segunda parte da entrevista ao Montijo On City, Paulo Futre conta como Mário Soares o salvou do recrutamento militar, dando-lhe uma missão única e especial que cumpriu com distinção. O montijense fala ainda sobre o papel que teve para o reconhecimento dos emigrantes e desabafa sobre a dificuldade de passar o seu primeiro Natal longe de casa.
Aos 21 anos assinou contrato com o Atlético de Madrid. Como é que se sentiu quando percebeu que ia deixar a sua vida aqui e viver para outro país?
Era uma pressão enorme. Já tinha ido a Espanha jogar, mas desta vez tinha de lá ficar o dia e a noite. Eu não fui jogar à bola. Eu fui numa missão do Mário Soares para me livrar da tropa. Ele foi contra as Forças Armadas. As Forças Armadas queriam que eu fosse para a tropa dia 1 de setembro de 1987 e eu já tinha assinado com o Atlético de Madrid. Se não fosse para a tropa era dado como refratário e tinha de ficar cinco anos sem vir a Portugal. Isso para mim era um pesadelo. Meu Deus, o meu Montijo, a família, a seleção! O embaixador português falava em nome das Forças Armadas e dizia que eu tinha de ir para a tropa em Castelo Branco porque seria um exemplo para os jovens portugueses. E os meus advogados diziam: «Nenhum português triunfou lá fora no futebol e o Paulo vai triunfar e vai ser um exemplo para todos os jovens. Se houver guerra é o primeiro a colocar a espingarda ao ombro».
“Agora não me podes falhar a mim, aos jovens portugueses e especialmente aos emigrantes”
Mas isto não saía dali, até que aparece o Mário Soares. Na primeira vez que falou comigo foi tentar convencer-me a ir fazer o recrutamento. Eu convenci-o a chorar bastante, mas nem foi bem por isso. Antes dessa conversa eu tinha tido uma reunião com o Real Madrid e as perguntas eram todas mais a nível psicológico. Queriam saber o que é que eu comia, se tinha saudades da minha família, quanto tempo é que eu era capaz de aguentar sem ver a minha mãe e a minha terra. Na segunda reunião começaram com as mesmas perguntas e eu estranhei. Perguntei: «Vocês fazem sempre estas perguntas aos estrangeiros?». E a resposta foi: «Não, fazemos a ti que és português e vocês têm uma mente frágil». No fundo, tinham razão porque nenhum português tinha triunfado lá fora. Ficavam lá dois ou três meses e tinham de voltar.
E eu contei isto ao Mário Soares. «Veja lá o que pensam de nós, Senhor Presidente». E aí é que ele se sentiu tocado. Disse-me que falávamos no dia seguinte. Foi aí que ele criou aquele estatuto de Desportista de Alta Competição para me abster de ir à tropa, durante oito anos. Mas avisou-me: «Agora não me podes falhar a mim, aos jovens portugueses e especialmente aos emigrantes». Na altura, os emigrantes estavam a passar muito mal, eram muito maltratados.

Quando foi jogar para Espanha, sente que conseguiu mudar essa mentalidade em relação aos emigrantes?
Seis meses depois de começar a jogar em Espanha e quando ia jogar fora, às Astúrias, a Galiza e a outras províncias de Espanha, iam os emigrantes ao hotel e a maioria dizia-me: «Hoje, sou o teu compatriota. Hoje, tratam-nos com respeito». Os emigrantes passaram a ser os compatriotas do “Él português”, que era eu. Para mim, foi o maior orgulho e será até ao último dia da minha vida. O Mário Soares sempre soube disto.
Os seus pais ainda viveram em Madrid cerca de dois meses, mas acabaram por voltar ao Montijo. O que é que lhes faltava em Espanha?
Eles não aguentaram. Sentiam que não podiam sair de casa. Fizeram a missão deles ao acompanhar-me nos meus primeiros meses fora do país, mas depois voltaram para a nossa casinha no Montijo. De vez em quando iam lá passar algumas temporadas e depois voltavam.

O Paulo também ficou impedido de ir ao Montijo durante um ano por não ter feito o recrutamento militar, não foi?
Sim. Em 1995, eu estava no AC Milan, o melhor clube do mundo na altura. Quando caducou a licença de oito anos que o Mário Soares me deu voltaram a chamar-me. Mas, mesmo eu tendo de ser operado e mostrando exames médicos em como não podia ir, queriam que fosse. Foi alguém mauzinho que há oito anos estava contra a situação toda. A licença caducava dia 1 de setembro e dia 30 de agosto já a imprensa tinha lançado o tema. Eu estava em Itália e ia jogar para a taça, nunca mais me esqueço. Quando chego à palestra, as televisões italianas só falavam de mim e do recrutamento militar.
Eu estive a falar com o [Silvio] Berlusconi e ele também achava que tinha sido uma sacanice porque, se faltavam dois dias para a licença caducar, não havia necessidade daquele aparato. Dizia-se que, em Portugal, andavam à minha procura e se eu lá fosse ia preso. Estava lá o Mário Soares, mas nem ele conseguiu fazer nada porque estava a terminar o mandato. Mas eu acredito que a última coisa que ele fez, ainda durante o mandato, foi passar-me à reserva porque passado esse ano sem ir a Portugal fiquei livre. Nunca lhe perguntei, mas tenho quase a certeza que sim. Afinal de contas, eu cumpri a missão que ele me deu.
Esse ano não vim passar o Natal a casa. Foi o primeiro Natal que passei fora.
Como foi esse Natal longe de casa?
Muito duro. Estava com os meus filhos, já era um homem, mas foi duro.

Como é que costumava ser o seu Natal no Montijo?
Jantávamos em família, comíamos o bacalhau. Depois saía e estava com a rapaziada, íamos à Missa do Galo. E isto eu não podia fazer em mais lado nenhum, só em casa. Eram pequenas coisas, mas significavam muito. O que mais saudades me dava quando passava o limite era ver as luzes de Lisboa à noite. A última coisa que fazia antes de ir embora era ir à praia do Samouco porque a vista era incrível. Era aí que eu carregava as pilhas. A seguir ia para a cama e no outro dia ia para o Porto, Espanha, onde fosse. Ia lá todos os dias, mas a última noite era obrigatório.
Ia sozinho?
Não. Com o César, sempre.
A sua estória com o César é muito engraçada. O César era dono do café que o Paulo frequentava na infância, “O Café do César” e agora seguem juntos para todo o lado. Como é que isto começou?
O César conhece-me desde pequenino. Andou comigo ao colo. É mais velho, mas é o meu melhor amigo. Aliás, é a minha mãe, o meu pai, o meu filho, o meu neto, é tudo. Na altura ele disse-me que estava a querer fechar o café e eu sugeri que ele corresse o mundo comigo.
Ao longo da sua carreira foi-se afastando, cada vez mais, do Montijo. Manteve o contacto com os amigos de infância?
Sempre tudo igual. Tenho um amigo que é um fanático do Sporting tremendo e, quando fui para o Porto, ele esteve uns anos sem falar comigo. Mas eu sabia que ele estava contente quando fui Campeão da Europa. Mas ele estava tão lixado comigo! Os meus valores eu não mudo. Não há nenhum clube que fique acima dos meus valores. Mas para algumas pessoas sim. E este meu amigo de infância que eu adoro ficou bastante chateado. Uns anos depois começámos a falar e não tocámos mais nesse assunto.

Como disse há pouco, no mundo da fama é preciso criar defesas e saber tomar as decisões certas. A quem é que recorre quando tem de tomar decisões difíceis?
Era sempre ao meu pai, antes de ele falecer. Depois comecei a decidir por mim. Mas, por acaso, quando fui para o Atlético ele não soube logo. Eu decidi e contei-lhe depois, mas aí não havia muito a decidir. Eu já era um profissional e a escolha era lógica.
Mas esta estória é engraçada. Depois de ser Campeão da Europa, o Porto fez um mundialito de clubes em Milão e, numa tarde, veio o Pinto da Costa ter comigo dizer que íamos jantar a casa do Presidente do Inter de Milão. Isto foi naquela altura em que também tinha estado com o Real Madrid e com o Barcelona. Eu tinha feito um grande jogo no Porto, já era conhecido a nível mundial e os grandes clubes estavam lá. Então lá fomos jantar a casa do Presidente, Ernesto Pellegrini, e estavam todos a tentar negociar o meu futuro até que chegámos a acordo.
“Se o homem ganha as eleições e temos a sorte de assinar com o clube, no dia seguinte estás reformado. Não trabalhas mais para o resto da vida”
Volto para o hotel às 2h da manhã como jogador do Inter. No dia seguinte, treinei, fui almoçar e quando estava a preparar-me para voltar ao quarto para dormir a sesta aparece o Pinto da Costa. «Paulinho, vem aí um homem de Madrid agora que é um candidato à presidência do Atlético. Vamos ouvi-lo porque ele vem num avião privado e está carregado de dinheiro para nos oferecer, mas vamos pedir o dobro».
Quando estive com o homem ele disse-me que aceitava as minhas condições, mas que tinha de o ajudar a ganhar as eleições. Fui despedir-me do meu treinador, o Artur Jorge, o Otávio [Machado] e faço a chamada que mais orgulho me deu até hoje. Liguei ao meu pai a explicar-lhe o que tinha acontecido na noite anterior com o Inter e a dizer que afinal ia para Madrid. Disse-lhe: «Se o homem ganha as eleições e temos a sorte de assinar com o clube, no dia seguinte estás reformado. Não trabalhas mais para o resto da vida». E assim foi.
Se não fosse futebolista, o que teria sido?
Sem dúvida que era o melhor bate-chapas do Montijo. Durante aqueles dias em que questionava o meu futuro enquanto futebolista, isto entrou-me mesmo na cabeça. Já estava focado e mentalizado que não ia ter nada do futebol.

Para Paulo, que é reconhecido nos quatro cantos do mundo e que já viveu em várias cidades, o que sente quando regressa à terra que o viu crescer?
Eu agora estou dividido entre Madrid, Montijo e Alcochete. Passo uma ou duas semanas em Espanha e depois venho para Alcochete, onde tenho a minha casa. Mas vou sempre ao Montijo visitar os meus compadres e relembrar os bons tempos que lá passei. Lá não preciso de dar autógrafos, estou em casa. Mas também me sinto muito bem em Espanha, é a minha segunda casa.
Acabou de ser condecorado com a mais alta distinção da cidade do Montijo, a atribuição da Medalha de Ouro. O que sente em relação a isto?
Foi um dia muito especial para mim. Um orgulho, um reconhecimento da minha cidade, do meu Montijo.
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