Paulo Futre: “Eu nasci ali na Praça da República. A minha infância e adolescência (…) foi ali à volta da praça”
O ex-futebolista esteve a recordar a infância com o Montijo On City e contou como, ao longo da carreira, conseguiu fintar os seus adversários.
Paulo Futre está entre os melhores jogadores de sempre e, este mês, recebeu a Medalha de Ouro do concelho do Montijo, cidade que o viu crescer e começar a dar os “primeiros toques” na bola, até se tornar no jogador reconhecido internacionalmente que é hoje. Por mais prémios e conquistas que o craque tenha alcançado, a humildade e a ligação à sua terra Natal mantiveram-se intactas. Na primeira parte da conversa com o Montijo On City, o ex-futebolista abre o seu coração para contar as peripécias vividas no início da carreira, o papel decisivo que o pai teve na sua vida profissional e o momento em que pensou que as portas do mundo do futebol se tinham fechado para si.
Nasceu a 20 de fevereiro de 1966, no Montijo e foi lá que cresceu. O que recorda da sua infância na cidade?
Uma infância maravilhosa. A minha mãe era doméstica e o meu pai era empregado de escritório. Na altura, o ordenado deles dava até aos últimos dois, três dias do mês. Aí já só comíamos sopinhas com leite, sopas de pão. Mas nunca passei fome, graças a Deus! Mas, infância melhor era impossível! Na altura, o Montijo era uma vila. Toda a gente se conhecia e havia espaços para jogar. Passava o maior tempo na rua, especialmente em frente à minha casa. Eu nasci ali na Praça da República. Então, a minha infância e adolescência, até ir para o Futebol Clube do Porto, foi ali à volta da Praça.
Portava-se bem ou era um menino que dava trabalho aos pais?
Era um bocadinho rebelde. Não era um louco, mas era rebelde. Do meu pai, bastava um assobio. Antes de jantar, a minha mãe ia à janela e chamava-me dez vezes. Eu respondia «Já vou!». Nunca ia. Bastava um assobio do meu pai e ia logo a correr. Tinha muito respeito.
Como era a relação com as pessoas?
Todos nos conhecíamos pelo nome. Eu era um miúdo simpático e com carisma e conhecia toda a gente pelo nome. Houve imensas pessoas que não via há décadas e reencontrei agora na condecoração, mas ainda consegui lembrar-me do nome delas.
Como nasceu a paixão pela bola? Quando é que se apercebeu que era realmente bom no que fazia?
O meu pai saía do trabalho às 18h ou 18h30. Eu tinha um pequeno quintal em casa e, todos os dias, até à hora de jantar, o meu pai jogava comigo à bola. Ele tinha sido jogador amador no Montijo. Também era esquerdino, como eu. Foi ele o grande culpado de estarmos hoje aqui.
O seu primeiro sonho foi ser jogador de futebol?
Acho que sim. Aos seis anos, quando ia jogar para a rua com os meus amigos já fazia a diferença. Fintava toda a gente. Então comecei a querer ser profissional. Mais tarde, quando estava no Sporting, pensei que, se a vida de jogador não corresse bem, iria começar a dedicar-me à mecânica. Iria ser a minha vida.
A primeira vez que participou numa competição foi num torneio organizado pelo Sporting para jovens entre os 10-13 anos. O Paulo tinha apenas 9 anos, mas juntou uma equipa aqui do Montijo e fez-se passar por um colega seu, não foi? Utilizou o nome do Rogério Paulo Viegas Alves.
Normalmente, faz-se esta batota com os mais velhos para jogarem com os mais novos. Isto devia ter sido um caso único. De um miúdo mais novo fazer-se passar por mais velho para jogar com jovens mais velhos (risos). A ideia devia ter sido do meu pai porque eu já fazia a diferença. Ele deve ter pensado «Como é que este rapaz vai jogar?». Aquilo era um torneio de captação que envolvia os miúdos da Área Metropolitana de Lisboa. Os melhores assinavam logo pelo Sporting. Então, lá entrei e a minha equipa ganhou o torneio.
Quando termina o torneio, o Aurélio Pereira vai ao balneário e diz «Quero o Júlio, o Alan e o Rogério». Mas onde estava o Rogério? Já não estava no balneário, já se tinha pirado. Depois, o Aurélio soube da situação e foi ao Montijo à minha procura. O meu pai contou-lhe a verdade.
No ano seguinte, volta a existir o mesmo torneio e aí já entro com o meu nome. Fomos à final, outra vez. Mas perdemos. O Aurélio volta a ir ter com o meu pai e tenta convencê-lo a deixar-me ir para o Sporting, mas o meu pai não queria. Era mais por causa da minha mãe e da minha avó.
Como é que o Paulo se sentiu ao saber que o seu pai tinha recusado uma proposta destas?
Eu nunca tinha saído do Montijo. Para jogar no Sporting tinha de apanhar o barco até Lisboa e ainda era uma viagem de uma hora para ir sozinho. Se fosse por mim, eu já lá estava, mas a minha mãe a minha avó tinham muito medo do que pudesse acontecer.
No ano seguinte há a seleção de Rocheville que é praticamente igual, mas era a primeira vez que Portugal fazia uma equipa de SUB-11. Normalmente, só iam os iniciados. Então houve um anúncio na televisão para os miúdos que estivessem interessados. Tinham de se apresentar no campo da vila ou cidade e começar os testes.
Os treinos eram de sexta a domingo e no domingo eram selecionados os seguintes para a próxima semana. No Montijo tive várias semanas, depois passámos dois jogadores para Setúbal. Aí foi a primeira vez que estive fora de casa. O processo era igual, treinos de sexta a domingo. No domingo era afixada uma lista com os miúdos que passavam. Cada vez que via que tinha passado fazia uma festa.
“Com 11 anos era o melhor jogador da Europa. Isto não era da minha cabeça, era mesmo verdade!”
Depois, os melhores de Setúbal foram jogar a Lisboa e acabavam os melhores dos melhores. Eram 300 ou 400 miúdos. O processo sempre igual, de eliminar durante semanas. Aí também foi a primeira vez que andei de barco. Fiquei nos melhores 16 de Portugal e fomos de avião para Rocheville. Estava mais contente por andar de avião do que por ficar entre os melhores 16. Já em França, fui o melhor jogador e o melhor marcador do torneio. Com 11 anos era o melhor jogador da Europa. Isto não era da minha cabeça, era mesmo verdade!
Quando chego ao aeroporto estava lá a minha família à minha espera e o Aurélio Pereira. Aí é que ele deu mesmo a volta ao meu pai.
Assim, aos 11 anos, entrou para o clube onde fez a sua formação, o Sporting Clube de Portugal. Como é que os seus pais se sentiam?
A minha mãe não ligava nada a isto. Nunca me viu a jogar, nunca foi a um jogo meu. Não conseguia porque tinha medo de que eu me lesionasse, mas tinha um grande orgulho. É claro que, nos primeiros anos, era mais preocupação do que orgulho. Já o meu pai nunca foi de dizer muita coisa, mas eu sabia o que ele sentia. Era também o sonho dele.
Trabalhou na oficina do seu primo João, aqui no Montijo, durante cerca de 2 anos, enquanto jogava no Sporting. Como é que conciliava os treinos e o trabalho?
Eu fui expulso da escola por faltas e por uma malandrice que eu lá fiz. Eu já estava nas seleções, tinha treinos e era muito difícil estudar. Eu saía todos os dias às 15h30 e chegava às 23h30 a casa, não há escola que aguente. De manhã, acordava todo roto e, em vez de ir para a escola, ia para o parque e ficava a dormir na casa de banho pública. Foi aí que o meu pai me pôs a trabalhar. Trabalhava das 9h até à 13h e depois ia treinar. Mas era um bom bate-chapas.
Aos 18 anos foi para o Porto e, em três temporadas, conquistou dois campeonatos portugueses e uma taça dos Campeões da Europa. Como foi esta mudança?
No primeiro mês fiquei em casa de um diretor com um guarda costas à porta porque nem sozinho podia sair. Podia ser sequestrado. Era uma loucura cada vez que saía. Eram outros tempos. Quando joguei o primeiro jogo pelo Porto já pude andar mais sozinho.
Esses tempos foram terríveis! Até aos 18 anos eu já era conhecido, mas vinha ao Montijo e fazia a minha vida. Quando fui para o Porto foi a loucura de ter saído do Sporting. Quando comecei a poder sair sem guarda costas, como gostava muito de cinema, ia sempre sair e ver os filmes novos. Antes de terminar o último autógrafo já o filme tinha terminado. Não conseguia ter a mesma vida que tinha no Montijo. Ia a um café e quando finalmente parava para beber o café já ele estava gelado. Não podia sair de casa. Tive de começar a aprender a viver em casa.
Como é que era recebido quando vinha ao Montijo?
Eu estava em casa. Falava com toda a gente, punha a conversa em dia e deixava de estar à defesa. No Porto, tive de criar muitas defesas para as armadilhas que apareciam. Eu também era um bocado rebelde, mas passavam-me armadilhas a todos os minutos e tinha mesmo de construir defesas. No Montijo não. Nunca estava desconfiado.
Nessa altura, tinha apenas 18 anos e, pela primeira vez, vivia longe de casa. Teve medo de tomar decisões erradas?
Esta decisão foi tremenda, mas talvez a mais acertada. Mas a decisão foi principalmente do meu pai que me deixou ir. O Sporting ia emprestar-me, não sabíamos para onde. Nesses dias andava super deprimido, o que era raro porque eu era um miúdo alegre.
” Se não for futebolista, vou ser o melhor bate-chapas do Montijo”
Chegou um treinador novo, um estrangeiro e disse «Eu não conto contigo. Não tenho espaço. No space. Fora!». A Académica de Coimbra estava na 1ª divisão e o meu pai disse-me «Se fores para a Académica arriscamos lá um ano. Se quiserem que vás para a 2ª divisão tu não vais. Vens para o Montijo e ficas perto de casa». O meu pai era inteligente. Percebia muito destas coisas. E o que ele me disse entrou-me na cabeça. Esses dias foram péssimos porque comecei logo a pensar que não ia ser jogador de futebol. Passou-me tudo pela cabeça, então pensei «Se não for futebolista, vou ser o melhor bate-chapas do Montijo».
Foi nessa altura que apareceu o Pinto da Costa e três anos depois era o melhor jogador do mundo. É incrível como passei de pensar que seria o melhor bate-chapas para ser campeão da Europa e o melhor jogador do mundo. Ou o segundo melhor porque devia ter sido o primeiro. Mas, para o mundo do futebol, eu fui o primeiro.
Aceda à segunda parte da entrevista em: