Tiago Correia: “Quero apresentar ao país e ao mundo o jovem que ama os fados e que vive das raízes da sua gente”
O jovem fadista fala, junto do Montijo On City, sobre a conceção do seu disco e as suas ambições profissionais.

Aos 25 anos, Tiago Correia, o jovem fadista do Montijo, encontra-se a “viver um sonho”. Cantor, mas também compositor das suas próprias canções, tem pisado palcos e afirmando-se como um artista que tem “estado no fado” e no fado quer ficar. Com o seu primeiro disco apresentado recentemente, Tiago Correia procurou homenagear os seus e apresentar-se ao mundo, com a “autenticidade e transparência” que revela nas suas composições.
Na segunda parte da entrevista ao Montijo On City, Tiago Correia fala de como foi feito o processo de conceção do disco, expectativas e ambições profissionais, bem como planos futuros na sua carreira enquanto fadista. O montijense fala ainda do seu desejo de deixar uma obra para a posterioridade, como os antigos o fizeram e continuam a fazer.
Este disco revela muito da tua composição pessoal. Qual o principal desafio que vem desse desejo de teres originais teus?
Por muito difícil que fosse também no tempo deles, todos os antigos criaram uma obra musical. Eu olho muito para o António Rocha, uma pessoa com 84 anos e que gravou comigo em estúdio, com a certeza de que há de ter gravado, ao longo da vida, músicas de outros artistas também, mas o espólio e a marca que ele deixa na história é uma obra única, reconhecida hoje como algo de mestria, de quem se dedicou inteiramente ao fado e que, através das suas mensagens, consegue ser ele próprio a cantar.
Nós, quando cantamos algo de outro artista, seguimos uma herança auditiva e quando a seguimos, caímos no risco de tentar imitar musicalmente aquilo que outras pessoas faziam, as suas expressões, o trato da letra e o trato da música. Sairmos desse registo obriga-nos a sermos nós mesmos, obriga-nos a não cantarmos algo com determinada intenção ou referência quem vem pelo ouvir.

Há, para mim, um grande objetivo na música muito maior do que chegar muito longe e ser muito conhecido. Esse não é o meu maior objetivo. Eu quero deixar obra.
Aliás, no meu primeiro disco, quando o recebi nas minhas mãos, guardei um para mim e autografei-o, tal como autografei às outras pessoas, com a seguinte mensagem: “Para os meus filhos e netos verem a paixão do pai e do avô em certa altura da sua vida”. Eu não tenho filhos nem netos, como se pode supor, mas é uma forma de deixar essa herança e me fazer presente, quando já cá não estiver.
Este foi, sem dúvida, o maior ensinamento que aprendi com os mais antigos porque, apesar de já cá não estarem, permanecem no nosso meio. Eu dou-lhes sempre vida, tento sempre dar-lhes valor ao escutá-los ou ao ouvir outros artistas cantarem os temas deles. O meu sentido é de deixar uma vida para além da vida. Essa é a minha missão na música e no fado. Desejo que, quando tiver 84 anos, possa ver jovens apaixonados, como sou, por fadistas mais antigos como o António Rocha ou Fernando Farinha. Se eu conseguir viver isso e ver isso a acontecer, valeu a pena ter feito música, andar nos fados, ter vivido para a música e com a música.
Ambicionas, um dia, ver alguém a cantar os teus fados?
Claro que sim. Isso é um sonho. A obra, quando se deixa, é para todos. Obviamente que há obras de cariz mais pessoal como, por exemplo, Simples Lamento que, é um tema, ele próprio, muito meu. Acho que seria especial ouvi-lo ser cantado por outra pessoa e veremos o que dizem os anos por vir, se haverá alguém que o cantará ou não, mas é um tema que o sinto muito meu.
Há outros [temas] em que deixo a obra para que as pessoas o possam interpretar. Neste caso, a Rua da Rosa, Para quê falarmos de amor, Inconfidências, a própria Balada de Novembro para quem se sentir deste mês, como eu que nasci no mês de novembro. Todas as minhas estórias podem ser cantadas por outras pessoas e é um sonho meu, mais tarde, vê-las a cantar esses temas. É sinal de que a obra chegou a muita gente e quando eu digo obra, falo em deixar um registo que fica para a posteridade. Ser uma referência é o meu grande sonho. Obviamente que não vivo disso no meu dia a dia, no sentido de estar a fazer para o ser, mas o meu sonho é ver pessoas a admirar o meu trabalho e a reconhecer esse legado, quando já cá não estiver.
E é um registo que deixas, no qual procuraste trazer autenticidade para quem o escuta, certo?
Aquele disco é exatamente tudo o que tenho sido. Eu tenho os fados tradicionais, que são os tais fados feitos por outros compositores nos quais adiciono letras novas para poder interpretar à minha maneira, e não simplesmente seguir aquela herança de criar algo parecido com o já foi feito. Depois, tenho os fados novos, como é o caso da Senhora do Chiado, que conta a estória de uma senhora que se encontrava pelo Chiado e eu via-a todos os dias, quando ia a caminho do Bairro Alto.
Eu tenho a tradição de passear sempre pelo Chiado, quando vou a caminho da Casa de Fado, e havia uma senhora, a dona Rosa, que estava sempre por lá a tocar ferrinhos e a cantar, embora fosse cega. Ela sempre me inspirou imenso e um dia, quando deixei de a ver, pensei que ela tivesse morrido. Então escrevi a estória dela e quando, mais tarde, a encontrei de novo, cantei-lhe a Senhora do Chiado, tive de lhe cantarolar para ela já o tema feito.
Este disco é muito pessoal e um disco de muita paixão, muito amor e muitos sentimentos que vivi ao longo da vida e sentimentos vividos com aqueles que mais amei também.
Tens o caso do Simples lamento, que fiz para o meu avô ou caso de, na Balada de novembro, ter aquele que era o instrumento preferido do meu avô, o acordeão. No Novo Fado do Montijo, tenho também a oportunidade de ter a Sociedade Filarmónica 1º. de Dezembro, enquanto banda do Montijo, a tocar nesta música, sabendo que o meu avô fez parte da banda filarmónica de Beringel e que aquele som que se encontra de forma tão característica no Novo Fado do Montijo era o som que ele tanto gostava de ouvir para além os fados.
Escrever fado é algo muito pessoal, certo? Qual é a parte que mais trazes de ti para a composição?
Um pouco de tudo. Nos primeiros anos da minha escrita trazia as minhas estórias. Continuo a trazê-las e tudo o que se encontra no disco é muito pessoal porque retrata a minha vida, a minha vivência, as minhas memórias e o que sinto, mas a partir de uma certa altura tenho também um grande desejo de escrever sobre aquilo que vejo. Aqui entra a parte da Comunicação Social, com a forma de olhar o mundo, mas isso ainda está guardado para um dia. Agora apresento a minha parte mais pessoal e aquilo que tenho sentido.
Alguma vez imaginaste, com apenas 25 anos, estares a viver a aventura em que te encontras hoje em dia?
Não, eu sempre sonhei o futuro, mas nunca o dei como certo. O que é certo é que tudo o que imaginava no passado, está a acontecer agora no presente e isso deixa-me muito feliz. No entanto, nunca imaginei que aos 25 anos estivesse a viver este momento tão especial na minha vida e desta forma tão verdadeira porque tenho a consciência que fiz um disco me representa verdadeiramente.

Sendo algo verdadeiro, sinto-o como digno, sinto-o como meu, tendo sempre em ideia de que o primeiro disco que fiz é um disco sincero e que não teve como objetivo primário agradar a um grande mercado. Se chegar, ainda melhor e ficarei muito feliz, mas sei que é um disco em que afirmo a minha verdade e no qual me podem ouvir tal e qual a pessoa que sou. Isso é o que me deixa mais feliz de ter alcançado aos 25 anos porque consegui fazer, muito jovem, algo que me orgulha tanto.
Conto com os apoios todos da produção musical do Ângelo Freire, que é o braço direito deste projeto e o grande construtor musical deste disco. Só foi possível apresentar este disco tão verdadeiro graças a ele e ao Sérgio Milhano, da editora. Com o futuro, continuo a sonhar. Se continuar a acontecer aquilo que sonho, serão certamente coisas boas.
Como tem sido o feedback daqueles que ouvem o teu trabalho?
Muito melhor do que eu alguma vez pensava, sinto que as pessoas têm acarinhado muito o disco e têm sentido esse Tiago verdadeiro. As pessoas que me acompanham e já o faziam há muitos anos reconhecem no disco o Tiago e isso é a maior vitória. É reconhecer que as pessoas sabem que é o trabalho de um rapaz que tem uma alma antiga, como todos dizem, que tem uma alma envelhecida e parece que vem de outra época.
É um disco de um rapaz que é muito sentimental, que é muito emocional e nós reconhecemo-lo com tal, é um disco de um rapaz que carrega uma tristeza que não se consegue perceber de onde vem, mas existe.
E esse peso, essa autenticidade, essa alma antiga nos fados que canto e na escolha do reportório está tudo representado neste disco, mesmo nos temas novos há sempre algo que vai buscar o antigamente e sinto também isso naquilo que eu próprio oiço.
Porquê alma antiga?
Apesar de não saber bem o que te responder, penso que é fruto da minha herança e daquilo que vivi em casa. Quando tinha 15 anos, já os meus avós tinham 80 anos e eu acho que está tudo ligado. Alma antiga depende muito das vivências que tive em criança e das vivências em jovem. Tudo o que vivi sempre foi muito maduro, quer fosse em casa ou na rua. Sempre vivi com muita intensidade e acho que é essa intensidade que me leva a ser conhecido assim.
Por vezes, quando somos jovens, temos a tendência de relativizar o tempo que temos e assumir que temos tempo para cometermos as maiores loucuras e eu sempre tive esse medo de ser louco, embora o seja, porque sempre entendi que não somos para sempre. Quando eu era miúdo já, por vezes, me comovia ao pensar na morte. É algo muito estranho e que me acompanha deste sempre, este pensamento de que não somos para sempre e que o que estamos cá a fazer tem importância.

Estamos cá todos para deixar uma obra seja ela humana, na forma como deixamos raízes para a nossa família e como damos aos nossos, seja na área profissional. Toda a vida existe para deixar uma marca.
Eu tinha sempre aquela ideia de que tínhamos de gravar o disco, por exemplo, para a próxima semana e depois íamos, eu entusiasmava-me com a ideia de ter o disco pronto em 2019 e quando dei por mim foram mais dois anos, mas aconteceu tudo no momento certo e na fase indicada. O Ângelo Freire esteve comigo na conceção desde disco desde 2018, não porque existisse falta de tempo, mas porque precisava também de amadurecer. Em estúdio, estes anos remetem-se em 15 dias, mas falo da própria construção do caminho, dos poemas, das músicas e da forma como vão depois ser produzidas e tocadas.
Apesar de compreender que tudo acontece na fase certa, nunca vou deixar de ter esta urgência de ver as coisas todas a acontecerem muito rapidamente porque sei que não somos para sempre e a forma como estamos a preparar a nossa obra de vida pode mudar substancialmente, esgotando-se o tempo que tínhamos para fazer o que tinha de ser feito.
Também trazes essa alma antiga para o fado?
O fado continua a viver de uma expressão muito popular e muito histórica, muito de memória coletiva. E sim, essa alma antiga também se encontra na voz e na forma como eu canto porque, por exemplo, a Rua da Rosa é o single de estreia e é também a música mais alegre, mas mesmo nesse tema, há quem diga que existe uma tristeza notória na minha voz. Essa tristeza, eu acho que se reflete num peso na voz e na ideia de que pareço já ter vivido mais 30 anos e isso eu não consigo explicar. Há essa alma antiga muito presente, mas obviamente que sou jovem e adoro viver essa juventude tal e qual como é. No entanto, eu diria que 75% do meu tempo é vivido com a ideia de que a vida é algo que tem peso e que deve ser aproveitado esse peso que a vida nos dá.
Neste disco, se tivesses que escolher apenas uma música, qual é que escolherias?
Eu estou muito feliz com todo o disco, mas o tema em que acho que vou para uma parte muito mais emocionante, muito mais minha e mais intimista é com o Simples Lamento, tema que escrevi para o meu avô, que gravei em 2018 e que regravei em 2021, por considerar que o tema ganhava outra expressão tocado ao piano.
Eu chorei muito em estúdio ao gravar este tema e, principalmente, enquanto gravava o tema. Não sei se se nota a cantar, mas é um tema no qual estou mesmo a chorar enquanto o canto. Por muito que goste de tantas estórias do disco por serem todas as minhas vivências, nenhum tema me comove mais que o Simples Lamento, no sentido em que é a minha maior expressão de intimidade, expressão daquilo que fui, daquilo que sou e da maior homenagem que presto ao meu avô.
Como foi o processo de composição do disco, nestes dois anos repletos de aventuras?
Esta construção foi demorada porque, inicialmente, eu tinha a ideia de gravar também temas de outras pessoas por ainda não ter a base poética para fazer este disco tal e qual como ele acabou por ser. Só que o reportório foi-se construindo e o trabalho em equipa com o Ângelo Freire permitiu-me insistir num processo criativo na escolha de músicas e letras mais exigente do que eu imaginara inicialmente para o disco.

No entanto, sei que as coisas aconteceram todas no tempo certo. Eu lembro-me quando compus o Novo Fado do Montijo, há dois anos, de ter tocado com o Ângelo e soar-me muito bem apenas com a guitarra e com a viola. Mas a um mês e meio do disco sair, tive um concerto no Cinema-Teatro Joaquim d’Almeida com outros artistas do Montijo, em que a banda 1º de dezembro quis que cada artista cantasse dois temas e calhou escolher o Novo Fado do Montijo. Assim que ouvimos o arranjo absolutamente sensacional que a sociedade filarmónica fez, nós percebemos que tinha que entrar no disco daquela forma. E assim foi.
As coisas foram todas acontecendo e este processo foi demorado até percebermos que cada tema estava tal e qual como devia estar.
Arrependes-te de teres deixado outros temas de fora neste disco?
Não, de todo. Os outros temas vão aparecer nos próximos. Tenho essa ideia já bem presente do que pretendo fazer a seguir. Este disco veio dizer às pessoas quem eu sou, a partir daqui vou falar das minhas referências, o que penso do mundo, que tempo estamos a viver o que é necessário deixarmos neste tempo que vivemos agora. Essa é a minha visão para o que se segue.
E, lá está, [a escolha das músicas a inserir] foi o mais pessoal possível. Mesmo no próprio disco, gravei mais temas que acabaram por não entrar por considerar que o perfil desses temas não se encaixava na estória de vida que eu estava a querer contar, a minha estória de vida. Os outros temas também faziam parte dessa estória, mas não se encaixavam neste dizer quem sou. O que está é. Não me arrependo de nenhum fado que tirei, nem de nenhum fado que mudei durante o processo. Tudo o que está lá, está certo.
Já tiveste oportunidade de levar os teus temas musicais até Lisboa?
Sim, levo-os desde sempre porque estes temas, antes de serem gravados em estúdio, eram experimentados junto das Casas de Fado, quando estava menos público. Levo-os sempre para Lisboa porque é lá que passo os meus maiores momentos de fado. Continuo a atuar no Forcado e nas outras casas de Lisboa onde vou atuar muitas noites e levo sempre um bocadinho disto. Embora, o alinhamento preparado em alguns temas como, por exemplo, a Rua da Rosa, o Novo Fado do Montijo e a própria Senhora do Chiado, seja muito direcionado para concertos. O que canto mais nas Casas de Fado, são os próprios fados de origem tradicional, que as pessoas reconhecem, mas não reconhecem depois as letras porque essas fui eu que escrevi, dentro daquelas músicas.
E agora? O que se segue?
Agora apresentei quem sou, sempre tenho sido esta pessoa e vou ser sempre esta pessoa. Só que agora vou-me desprender um bocadinho de dizer quem sou para dizer o que penso e a forma como vejo o mundo. Criticamente ou não, divertidamente ou de forma mais pesada, apesar de tender sempre para o lado mais pesado por ser esta mais a minha forma de ser. Pretendo contar de forma mais leve o que é o mundo e como nós devemos refletir sobre o papel social que cada um de nós deve ter no mundo. Não sei se vai ser incorporado já no próximo disco, mas é algo que quero fazer ao longo dos anos.
Há também a grande ideia de homenagear esses grandes fadistas sempre. É algo que eu quero sempre fazer, mas o meu percurso agora vai ser na linha de construir reportório novo, com base em homenagens, em referências e na minha visão tão pessoal. Eu já me encontro a trabalhar para que seja esse o rumo que sigo e espero que seja o que se segue, mas veremos.
No próximo ano e meio, a certeza que tenho é de que o foco vai ser o E Decididamente. Há muitos concertos para acontecer, coisas que não posso anunciar já, mas que estão a ser devidamente marcadas para este disco.
Quero apresentar ao país e ao mundo, o Tiago Correia que ama os fados e que vive das raízes do seu povo e da sua gente.
A calendarização de eventos, vou deixando nas redes sociais que, acreditem ou não, são o meu lado mais jovem. São o lado que mais exploro para fazer a divulgação do trabalho e, talvez, de tudo o que tenho na minha vida, a parte em que sou mais jovem e aproveito mais a idade que tenho para mostrar o meu trabalho. A própria rede social vive muito da divulgação que faço do meu trabalho, mas aproveito para ser ativo e dar-me a conhecer.
Vou sim divulgar por lá tudo o que vai acontecer, os meus espetáculos e concertos. Vamos ver o que 2022 nos prepara e tenho já uma equipa a trabalhar para que tudo corra bem e eu possa apresentar o meu disco em vários locais. Sei que carrego a grande responsabilidade de ser um jovem fadista que é ser verdadeiro, mais perto das minhas origens e da minha essência.
Leia a primeira parte da entrevista dada ao Montijo On City em: