Levi Martins: “O Montijo poderia tornar-se muito interessante para a criação artística e cultural”

A propósito do regresso da peça de teatro “Há dois anos que eu não como pargo“, fomos conversar com o encenador Levi Martins, um dos fundadores da Companhia Mascarenhas-Martins.

Quisemos saber como começou este projecto inovador no Montijo e Levi Martins começa por nos contar que a sua relação com as artes já vem desde muito cedo, “eu comecei por ter bandas de garagem aos 14/15 anos e queria ser músico, e depois acabei por ir estudar para a Escola Superior de Teatro e Cinema, eu estudei cinema e realização, e conheci lá a Maria Mascarenhas que estava a estudar teatro”.

O que o levou a fundar a Companhia Mascarenhas-Martins?

Começámos a conversar muito sobre o que achávamos que podia ser feito de diferente daquilo que já estava a ser feito, sobretudo porque nos parecia que naquela escola havia pouca conversa sobre a relação com o público. Falava-se muito sobre estética, do que se devia fazer do ponto de vista artístico, mas falava-se pouco da consequência pública do trabalho artístico, tanto na área do cinema como no teatro. Este período foi muito importante para nós. Para já, porque somos um casal e depois porque começámos a  alimentar essa ideia de fundar uma companhia em conjunto”.

Já viviam no Montijo nessa altura?

Isto foi uma ideia prévia a virmos viver para o Montijo, porque entretanto eu tive a oportunidade de fazer um estágio-emprego aqui no cinema teatro Joaquim d’Almeida. E foi por acaso, porque nós na altura estávamos a viver em Setúbal, foi uma oportunidade que tive, não tínhamos tido contacto prévio com o Montijo.

Ao trabalhar no cinema teatro conheci o Adelino Lourenço, conheci o André Reis que também lá estava a estagiar, e criou-se uma oportunidade no dia mundial do teatro porque houve um cancelamento de um espectáculo e nós propusemos internamente fazermos nós qualquer coisa.

Essa é a pré-história da companhia. Mas o que aconteceu nessa altura foi que conversámos muito sobre como no Montijo não havia nenhuma estrutura profissional a trabalhar regularmente. Fomos escavar um bocadinho a história e percebemos que nunca houve. Houve várias estruturas, aliás, colectividades,  grupos amadores, muito teatro de revista. Houve muitos grupos de teatro mas nunca houve ninguém a fazer trabalho regular profissional, como a companhia de teatro de Almada ou como o teatro animação de Setúbal, enfim, isso nunca tinha existido.

Então nesses diálogos ainda lá dentro no cinema teatro com o Adelino, com o André e a Susana Bordeiro que também lá trabalha, pensámos que se calhar era interessante  pensar nessa hipótese e levá-la mais a sério. E isso acabou por acontecer em 2015, ou seja, decidimos mesmo formalizar, fazer uma associação cultural.

Quais são as principais actividades da Companhia?

No fundo a ideia base era fazer teatro mas não só. O André Reis é músico, eu também sou músico e sempre quisemos fazer um projecto um bocadinho mais abrangente. Não só produzir espectáculos de teatro, mas também concertos. Entretanto já lançamos um livro, já fizemos um documentário em parceria com a 1º Dezembro.

O teatro tem sido a actividade principal, porque envolve muito esforço de produção e temos tido oportunidade de fazer vários espectáculos com regularidade.

Mas no fundo, esta companhia vem desse encontro entre nós, a Maria e eu, e entre nós e o Montijo, e esse acaso feliz de termos vindo cá parar e de sentirmos um bocado essa lacuna, ou uma coisa que era uma oportunidade de fundar uma companhia. Numa altura já muito diferente dos anos 70 ou 80, em que se pensava em descentralização e sair dos grandes centros urbanos, portanto foi aqui uma conjugação de factores, que creio feliz, embora nos cause também muito sofrimento e muitas dificuldades.

Os textos são originais vossos?

Nós decidimos de início que tentaríamos não fazer reportório, ou seja, fazer sempre textos originais. A Maria escreve, o Miguel também, e já é o 2 espectáculo que fazemos com ele.
Estreámos uma coisa a convite do teatro aberto, fizemos lá uma co-produção a partir de um texto que ganhou um prémio da sociedade Portuguesa de Autores, mas foi um texto da Marta Figueiredo, autora portuguesa, que foi a primeira vez que foi levada à cena. Portanto a nossa ideia é sempre, ou tentar que seja sempre a partir de autores portugueses, ou preferencialmente de coisas que nunca foram levadas à cena e que são de agora, para criar um diálogo agora.

Não posso dizer que não abrimos excepções, porque nós já produzimos espectáculos do Luís Miguel Cintra.

Mas a nossa ideia é fazer sempre originais, porque achamos que cria um diálogo com as pessoas. É diferente de estarmos a falar através de palavras escritas há um século ou dois, ou noutro país. Ou as nossas palavras, por mais que isso seja um risco também, porque claro, do ponto de vista de produção é mais fácil pegar num texto que já é conhecido.
Se fizéssemos o Romeu e Julieta de Shakespeare, as pessoas iam ver porque é aquela coisa, vou ao teatro e vou ver um Shakespeare ou vou ver um Gil Vicente, ou um Molière. Assim não, vou ver o Miguel Branco e as pessoas não sabem quem é o Miguel Branco. Mas também se ninguém fizer isso, nunca vamos conseguir ter autores que as pessoas conheçam.

De onde surgiu a ideia para esta peça?

O Miguel Branco, o autor do texto, é jornalista e nós conhecemo-nos, quando eu trabalhei na companhia de teatro de Almada.

Ele costuma acompanhar os ensaios de imprensa porque escreve sobre teatro há muito tempo. Esse foi o nosso encontro. E nós convidamo-lo para vir moderar uma conversa em 2017.

Num jantar, a Maria começou a dizer: tu se calhar devias era escrever teatro. E ele disse: por acaso até tenho uma ideia. E a Maria disse: então vá, escreve isso e a gente produz e faz. 

Portanto foi uma decisão um bocado conjunta. Ele tinha essa vontade já há algum tempo, de cruzar rap com teatro. E depois pela nossa amizade, pelas coisas que fomos fazendo juntos, a coisa formalizou-se e decidimos produzir. Foi isso!

A peça é muito baseada em coisas que lhe são próximas. Ele viveu com outros dois amigos numa casa. É ele que escreve as rimas. Aquilo é um ambiente suburbano que ele bem conhece. A linguagem é mesmo dele. Aquilo obviamente é uma ficção, só que tem alguns traços daquilo que ele viveu. É um tipo de texto com esse lado de intervenção, de ter um olhar critico sobre a sociedade e a política. É este cruzamento de ideias.

A peça já tinha estado em cena?

Fizemos só uma apresentação, no dia 12 de Março e foi exactamente nessa noite que o primeiro ministro anunciou que as escolas encerrariam na segunda-feira seguinte. Embora o teatro não tenha fechado imediatamente, a verdade é que decidimos não fazer as apresentações subsequentes.

E fora do Montijo?

Fizemos uma apresentação em Setúbal no Festival Internacional de Teatro de Setúbal, e estivemos no Cacém, também num festival: o Muscarium, que é realizado pela companhia de teatro Mosca.

Como é que foi a recepção do público?

Em Setúbal correu particularmente bem, não só porque houve lotação esgotada, mas porque (eu acho) que houve uma recepção muito calorosa ao espectáculo. Acho que as pessoas também estão se calhar mais sensíveis a esta ideia da importância da actuação ao vivo, porque depois disto tudo é um privilégio poder voltar a ver espectáculos, e esse entusiamo sente-se.

O espectáculo apesar de tudo permite uma reflexão sobre o que é começar uma vida adulta, e quais são os anseios. Existem mais incertezas, acho que agora ainda se torna mais premente essa reflexão.

Qual é a expectativa para a apresentação da peça no Montijo?

Nós não fazemos espectáculos necessariamente com a preocupação de ter casas muito cheias ou de ter muito público, porque temos consciência de que ainda estamos numa fase de conquista de público.

Não nos podemos queixar. Temos tido sempre público nos nossos espectáculos, mas obviamente o teatro não é a mesma coisa que um concerto mainstream que enche o cinema teatro.

A expectativa é sempre de conseguir pelo menos conquistar aquilo que já estava conquistado, se bem que nesta fase também é um bocadinho difícil de prever, porque se por um lado as pessoas querem ir ao teatro, por outro há algumas pessoas, que ainda têm algum receio de frequentar espaços fechados. Portanto a nossa expectativa é que haja público tal como houve no passado e a expectativa é que as pessoas venham reflectir connosco acerca deste temas, essa é a nossa preocupação principal. Mesmo que sejam só 5, 10, 30, o número não interessa. Interessa a qualidade da experiência ou a qualidade de relação que criamos uns com os outros.

Quando nós estreámos, tivemos uma experiência muito interessante: fomos à escola secundária Poeta Joaquim Serra várias vezes fazer leituras da primeira cena, e muitos alunos da escola foram assistir a ensaios no cinema teatro. E esse parece-nos um público bastante interessante para este espectáculo, que são os jovens no secundário que estão justamente a tentar perceber que vida é que vão ter a seguir.

Na sua opinião, o que é que falta no Montijo a nível cultural?

Acho que falta muita coisa, mas é natural, porque noutros locais houve um investimento maior e de há mais anos. Acho que falta obviamente um maior investimento nos profissionais que cá trabalham. Esse investimento não passa só por dinheiro, passa também por espaços de trabalho, nós não temos um espaço.

Sinto que falta um pensamento mais articulado em relação ao que já existe – As colectividades podem ter um papel muito importante, mas precisam de outro tipo de investimento. Se as coisas fossem todas ligadas, se houvesse por parte da autarquia uma maior vontade de ligar os pontos, de juntar as pessoas, numa política comum em vez de ser uma politica de rivalidade entre as pequenas coisas que existem, acho que o Montijo poderia muito bem tornar-se num lugar muito interessante para a criação artística e para a cultura.

Há características próprias muito interessantes – a cidade tem muitos músicos profissionais e não profissionais muito bons, condições geográficas interessantes porque está próximo de Lisboa, e porque é também um lugar muito apelativo para quem sai de Lisboa por causa das rendas. é uma cidade relativamente jovem, e os jovens são um público preferencial para a cultura e para as artes, porque são os públicos do futuro.

Faltam apoios?

A Câmara já nos apoia a nós e a outras entidades, e a junta de freguesia do Montijo e Afonsoeiro também, mas eu acho que as prioridades estão noutros sítios, ou seja, o aeroporto se calhar está no topo das prioridades e depois as coisas vão andando até cultura. Eu colocaria a cultura mais acima, porque acho que a cultura até pode ser importante para o próprio aeroporto. Acredito que o pensamento devia ser ao contrário, começar pela base e criar condições para a cidade ser mais dinâmica, ter mais vitalidade e permitir, por exemplo captar outro tipo de visitantes e outro tipo de investimento.

“uma cidade muda, transforma-se muito por via da cultura e das artes”

Como é que fazem para ensaiar?

Temos ensaiado em Lisboa, no espaço de um actor e encenador que é nosso amigo e que nos empresta por vezes um espaço. Foi parcialmente ensaiado lá, parcialmente na 1º Dezembro, ou no Ateneu Popular do Montijo, que são algumas entidades que são nossas amigas, já há bastante tempo, e que nos disponibilizam os seus espaços.

Mas faltam espaços de criação a sério, porque nenhum desses espaços tem condições técnicas e certas para a criação de espectáculos. Era preciso espaços mais pequenos do que o cinema teatro, que permitam trabalhar o espectáculo de uma ponta à outra, e que permitam a residência permanente, por exemplo, da nossa companhia, ou eventualmente outras que surjam.

O cinema teatro Joaquim D’Almeida é um espaço de acolhimento, que tem um espectáculo por semana; não é um espaço de criação e  não é um espaço em que nós consigamos estar em cena, por exemplo, 3 semanas. Isso modifica um bocadinho a relação com o público, porque é diferente nós sabermos que um espectáculo está ali um fim de semana, ou sabermos que vai estar um mês em cena e que podemos ter várias oportunidades para ir lá ver.

Quais são os projectos para o futuro?

Nós temos muitas coisas em andamento, porque não trabalhamos só em teatro. Temos livros, novas publicações que vamos fazer, tudo da companhia e por vezes em parceria com outras entidades.

O primeiro livro que publicámos foi em parceria com o centro de estudos de teatro da faculdade de letras da universidade de lisboa, e o título é: Criar e produzir, do qual vamos fazer uma segunda edição.

Estamos em processo de trabalho. Já estamos na fase de concepção de um novo projecto dirigido pela Maria e com texto dela, e também estamos a investir um bocadinho de tempo e de trabalho num outro projecto.

Nós temos uma banda associada à companhia.
Normalmente nos aniversários damos um concerto, mas é a partir de reportórios de diferentes épocas. O último que demos foi com a nova música portuguesa, tocamos coisas de Samuel Úria, Capitão Fausto, de pessoas que escreveram canções nos últimos 10 anos. E agora decidimos experimentar fazer originais, ou seja, pedi a uma pessoa para escrever as letras e nós começámos a compor e estamos no processo de criação de um disco que também havemos de lançar em 2021.
Essas são as 3 frentes mais importantes para já, depois temos outras coisa mas ainda não posso falar sobre isso.”

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