Francisco Pescador: “Quando via os homens a ir para o mar sem mim começava a chorar”
Francisco Nunes narra na primeira pessoa as estórias de uma vida marcada pela pesca, tendo a sua pequena bateira como melhor amiga.
Nenhuma outra profissão é tão representativa do povo português. No auge da pesca no rio Tejo, o Montijo chegou a contar com cerca de 200 pescadores e 40 embarcações à vela, números que se foram reduzindo para chegar a 100 pescadores e 30 barcos à vela no 25 de abril. Atualmente, estima-se que ainda existam 18 pescadores que utilizam a rede de tresmalho para a pesca do robalo, tainha e safio, a rede de arrasto, mais apropriada para chocos, camarão e enguia e a linha para a pesca das irozes, robalos e linguados.
Francisco Nunes, de 86 anos, é o rosto de um homem marcado pela vida no mar que se diverte a contar as estórias daquela “vida engraçada” de que tem tantas saudades. Ao caminhar pelo Bairro dos Pescadores, onde sempre viveu, enumera as memórias de tempos distantes.
“Isto aqui era um rio. Eu nasci aqui no Bairro dos Pescadores, então saía de casa e passava os dias na água a brincar com os barcos (…) Em 1950 era capaz de existir aqui 50 canoas, fora as fragatas que andavam a carregar o peixe para Lisboa. Ali ao fundo era um viveiro. Criavam-se peixes gordinhos e saborosos, mas com a poluição tudo mudou”, recorda o pescador.
Filho e neto de pescadores, Francisco Nunes sempre teve a água salgada no sangue e, desde novo, que expressões como “arrumar o cerco” ou “ganhar conhão” fazem parte do seu vocabulário. Em menino, a sua maior ânsia era embarcar com o pai quando se aproximavam as longas temporadas no mar.
“O meu pai era o responsável por levar o «combustível» para as semanas no mar. Enchia o barco com quatro molhos de lenha, cinco barris de vinho, 40 quilos de batatas, muita água e fruta. Aos dez anos, quando via os homens a ir para o mar sem mim começava a chorar. Eles diziam-me «Oh Chico, não chores! Nas férias grandes [ férias de verão] vens connosco». E assim foi. Nas férias seguintes lá fui eu. Adorei, mas enjoei bastante. Havia homens a dormir e eu não conseguia. Eles brincavam comigo e diziam para eu ir de boca aberta para o vento e eu ia.“,
Não foi preciso muito tempo para se habituar ao balanço do barco e, quando percebeu que era no mar que se sentia feliz, completou a quarta classe e deixou a escola. Com um olhar ternurento, o pescador confessa que aos 14 anos já se orientava muito bem sozinho entre as ondas.
“Numa noite de inverno, andava à pesca ao arrasto com o meu pai. Apanhámos umas boas caixas de peixe e, como o peixe valia mais em Lisboa, o meu pai pediu-me que fosse numa lanchinha com um pequeno motor vender o peixe à outra margem. Saí daqui às 02h da manhã, sozinho. Tinha 14 anos.”, recorda.
“Quando estava a meio caminho meteu-se o nevoeiro. A minha sorte é que o nevoeiro era rasteiro e fazia um buraco no céu que dava para ver as estrelas. Pelas estrelas consegui orientar-me e fui o caminho todo a pedir que a névoa não levantasse. Já mais próximo de terra comecei a ver o clarão das luzes de Lisboa e fui ter ao Terreiro do Paço. Cheguei eram 06h da manhã. Fomos pesar o peixe. Eram 08h ou 09h e voltei para o Montijo.“, relata.
Com 15 anos tirou a cédula de pescador e aos 40 tornou-se Marinheiro de 1ª. Dois anos depois quis fazer o exame para se tornar Mestre do Tráfego Local e dirigiu-se à Capitania de Lisboa com “toda a confiança” de alguém que conhecia o mar desde os 10 anos de idade.
“O exame não foi fácil. Tive de regatear a bússola toda, através dos ventos, mas eu respondi a tudo. Até me espantei porque pensei que fosse ter muitas dificuldades. Mas eu sabia que, mesmo não passando no exame, podiam dar-me um barco à confiança que eu sabia orientar-me porque comecei em pequenino.”, afirma confiante.
De ar ternurento, recorda o dia em que comprou a sua bateira, “Maria Fernanda” (nome da filha), como “o dia de sorte”. Tinha 30 anos e deu 14 contos pelo pequeno barco que, ainda hoje, afirma ser a sua companheira de viagem. “Ganhei muito peixe com ela. Ia sozinho para o mar e chegava a apanhar 70kg de Linguados e outros 70kg de Robalo.”
É entre memórias e estórias que preenchem o coração deste pescador que deixa escapar um suspiro comovente. “Tinha uma vida de liberdade, mas também trabalhávamos muito. Chegámos a ficar 15 dias no mar e estávamos sempre dependentes da maré. Quando tínhamos sorte, começávamos a arrumar as coisas às 17h e chegávamos a casa perto da 01h. A essa hora ainda íamos pôr a panela ao lume com batatas e peixe a cozer. Comíamos sempre depois do trabalho.”, lembra o montijense.
Francisco Nunes reformou-se em 1998, com 63 anos, mas nunca abandonou a pesca. Durante os sete anos seguintes fez parte da embarcação “Alerta do Mar” e continuou a seguir uma profissão que o deixava realizado. De olhar cabisbaixo, admite que hoje já não consegue passar um dia inteiro no barco, mas ninguém lhe tira os pequenos momentos de prazer.
“Às vezes dá-me na cabeça de ir para o rio e vou. Levanto-me às 5h30 da manhã e fico naquela calmaria. Ainda apanho muito peixe. Anteontem apanhei 50 quilos de enguias.”, diz orgulhoso.
Em forma de confissão, o montijense admite que a pesca é o seu único dom, mas rapidamente se contradiz quando abre a boca para cantar versos compostos por si:
“Canoa do rio
Já não te vejo
Sinto uma saudade
Quando olho para o Tejo
Foste pioneira
Já ninguém te ouve
Mas fizeste parte
Da cultura de um povo”