Relatos com História: a travessia fluvial do Tejo até ao Cais dos Vapores

A partir de 1977, após a publicação dos volumes da “História de Portugal” da autoria do Professor Doutor Joaquim Serrão que se verificou e reconheceu a importância histórica local dos testemunhos escritos por passageiros estrangeiros. Estas impressões têm especial importância no caso da Aldeia Galega do Ribatejo devido à destruição das actas camarárias anteriores a 1838.
Selecionámos dois relatos de escritores com 94 anos de distância cronológica, o primeiro registado em 1902 sobre a travessia fluvial pelo rio Tejo e o segundo escrito em 1996 em dia de Festas Populares.
Vítor Ribeiro (1902)
O escritor e jornalista Vítor Ribeiro (1862-1930) partiu de Lisboa para desembarcar na Aldeia Galega com o objetivo de chegar a Setúbal. Anotou a viagem fluvial no seu diário:
«…Maré vasia transforma-se a paisagem completamente: bancos de lodo, cobertos de plantas marinhas, por onde correm os patos e aves aquáticas, e por entre os quais serpeia o esteiro em sinuosas voltas, até à ponte-cais. Então, barcos de pesca, levam os pescadores que procedem à armação das redes onde deve enleiar-se e ficar preso o peixe, quando novamente a maré vasar. Outros, rapazes ou homens, percorrem os mouchões, de perna nua, e cabaz no braço, recolhendo o camarão e a ostra. São afamadas as ostras do Montijo. No rio abunda o charroco, a tainha, a dourada, a boga e outro peixe miúdo…».
Paul Hyland (1996)
O professor universitário inglês Paul Hyland (n. 1947) publicou, em 2000, o livro intitulado Por este Tejo acima. Uma viajem à descoberta da alma portuguesa onde consta uma viajem ao Montijo durante as Festas Populares de S. Pedro:
«…O Madre de Deus, um ferry da Transtejo arrastava-se durante cerca de uma hora sobre o Mar da Palha. Era dia de S. Pedro, o Pescador, o que caminhou sobre as águas até o medo abalar a sua fé e teve de ser salvo por Jesus. Um homem passeou-me de bombordo a estibordo, e novamente de regresso a bombordo, indicando coisas ao longe com uma mão em que só sobravam dois dedos. Outros dois estavam cobertos por uma ligadura. Quinze quilómetros após a saída de Lisboa desembarcámos no cais do Montijo. Embora há muitos anos se não veja um navio a vapor naquela “estação fluvial”, reconstruída com dinheiros europeus , toda a gente continua a conhecer o local por Cais dos Vapores. A nossa chegada fez oscilar um grupo de barcos com proas erguidas e arqueadas como as pontas dos chinelos turcos. Tínhamos passado por toda uma variedade de pequenos barcos de pescadores, tradicionais e modernos, onde se faziam votos para que o dia deste santo fosse propício à faina, mas a travessia fora dominada pela visão de terminais e tanques petrolíferos, helicópteros levantando voo da base naval próxima, e novos blocos de apartamentos em tons pastel, alinhados ao longo da frente ribeirinha do Montijo, em expansão. Aqui, porém, logo após uma atordoante salva de morteiros, os ritos antigos ganham maior importância. Um esquife, profusamente embandeirado, largou do Cais dos Vapores escoltado por barcos de pesca que já eram brilhantes, antes mesmo de serem decorados. Cada linha e cada detalhe das embarcações eram realçados por contrastes de cores e de motivos, não de todo estranhos às caravanas de viajantes, aos barcos do canal ou às antigas feiras. Os seus nomes intrincados – como “A Pombinha”, “Al(c)atejo” ou “Deolinda Maria” – liam-se em arabescos, no interior dos painéis com flores pintadas. Das proas, amuradas e casas dos lemes brotavam gladíolos e cravos. (…) A água era um mar de vidro salpicado de confeitos. São Pedro foi desembarcado com todas as cerimónias no Cais das Faluas. O seu fino rosto de boneco estava barbado e sereno sobre uma grande coroa carmesim, a mão esquerda erguendo a cruz papal, a direita segurando as chaves do Reino dos Céus. Quatro pescadores transportaram sob os ombros a base de palanque, também acolchoada a carmesim, vestidos com calções pretos, faixas à cintura, espessas camisas aos quadrados e uns barretos.»
Fonte: Bolseiro Dias, Mário. Estórias com História, Informação Municipal, 2020.